O regresso do «Estado Novo»

Correia da Fonseca
Ainda não havia sido anunciada a atribuição do Prémio Pessoa e já alguma comunicação social dava destaque ao trabalho de Irene Pimentel, especialmente consagrado a alguns aspectos característicos e identificadores da ditadura fascista. Assim, o diário do engenheiro Belmiro de Azevedo consagrou, numa primeira vez, umas três páginas à história da PIDE segundo Irene Pimentel e, numa segunda, o mesmo espaço à história da Mocidade Portuguesa. Pouco tempo depois, soube-se que o júri do Prémio Pessoa, presidido pelo dr. Balsemão, decidira por unanimidade, o que significará que sem hesitações, atribuir o Prémio deste ano a Irene Pimentel. Permita-se-me que acentue que nem por sombras me proponho contestar, ou sequer duvidar, da justeza da atribuição, tanto mais que não conheço os trabalhos de Irene Pimentel e também que, ainda que os conhecesse, a sua avaliação não caberia na vocação desta coluna. É certo que suspeitei de que terá havido algum aproveitamento no «Público» para sugerir sobretudo aos leitores apressados (e quantos não o serão?) uma imagem relativamente bonacheirona da PIDE e uma visão simpática e porventura atraente da Mocidade Portuguesa Feminina. Mas é claro que Irene Pimentel, não sendo responsável pelo que o «Público» faz e como faz, não tem nada a ver com a eventual manipulação do seu trabalho por terceiros. Quando o jornal destaca, em título, que a PIDE assassinou muito menos que a Gestapo, verdade afinal inevitável em face das diferentes conjunturas históricas e até da diferença no plano populacional, é claro que a historiadora não tem nada com isso. O mesmo para a publicação de fotos de filiados da MPF com ar de radiosa felicidade nas suas respectivas fardas de blusa verde e saia castanha. Como se sabe, na Alemanha nazi e na Itália fascista era diferente a cor das blusas (para as raparigas) e das camisas (para os rapazes), mas bem se sabe também que neste como em muitos outros casos não se pode ser rigorosamente igual ao modelo inspirador.

Sem sombra de pecado

De qualquer modo, é claro que tudo o que até aqui ficou escrito não tem nada a ver com a televisão. Sucede, porém, que a TV deu notícia mais ou menos larga da atribuição do prémio e da temática escolhida por Irene Pimentel. E sucede também que, ao fazê-lo, sempre se referiu à ditadura fascista designando-a pela fórmula oficial que ela escolheu para si própria, designação não só benigna como veiculadora da sua própria promoção propagandística: Estado Novo. Reconheço, naturalmente, que não estão as estações portuguesas de televisão obrigadas a reconhecer que o fascismo português era fascista, facto aliás cada vez mais contestado por ilustres (e sobretudo socialmente promovidos) pensadores, politólogos e historiadores, mas parece que a caracterização da ditadura como ditadura se incluiria numa espécie de serviços mínimos de uma informação esclarecida e esclarecedora. Mesmo que porventura Isabel Pimentel, por razões que serão as suas, se atenha à designação de Estado Novo que Salazar escolheu, não parece que a TV tenha ficado obrigada a seguir, por aparente inocência, o mesmo critério. O que parece, isso sim, é que a restituição mediática da alcunha de Estado Novo à ditadura fascista serve lindamente ao branqueamento, inegavelmente em curso, desses quarenta e oito anos de crimes cívicos, políticos e de direito comum. Se Irene Pimentel tem alguma coisa a ver com isso, voluntariamente ou não, conscientemente ou não, será (pre)ocupação de outros, não a desta coluna que se ocupa da TV. Uma coisa é certa: uma palavra na televisão, ou apenas uma omissão repetidamente praticada, tem mais consequências sobre a chamada opinião pública que toda a obra de Irene Pimentel, que no caso pode ter funcionado apenas como lugar de arranque de mais uma operaçãozinha manipulatória, pretexto, testa-de-ponte. Sem prejuízo da inteira inocência da historiadora, do júri que a galardoou e do seu presidente, o dr. Balsemão. Não foram decerto eles que inventaram a Operação Branqueamento. E das contribuições involuntárias não rezam os anais da culpabilidade.


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