Os bispos espanhóis e a guerra civil

Jorge Messias
A Conferência Episcopal espanhola decidiu pedir publicamente perdão por omissões que eventualmente tenha cometido durante a ditadura franquista. Na comunicação social portuguesa esta notícia foi dada por um só jornal, num texto curto, incompleto e confuso. Todos os outros órgãos de informação preferiram remeter-se a um piedoso mutismo que facilmente se compreende. Falar-se na guerra civil de Espanha ao fim de 70 anos de silêncios é brincar com o fogo. Mais prudente será calar e manter a ficção de que a igreja não foi cúmplice dos horrores dos fascismos ibéricos. Portanto, é imprudente remexer em tão escaldante assunto. A nossa memória colectiva conserva as cicatrizes desses dias.
Mas o que é evidente não se pode ocultar. A Guerra Civil de Espanha foi a expressão da estratégia do terror. Foi a experimentação laboratorial das chacinas que se prolongaram, depois, na guerra mundial de 1939/45. Aquilo que se passou então é tão importante que toda a história do actual mergulha raízes naquilo que aconteceu nesses terríveis dias. E é preciso recordar que Franco e os seus fascistas subiram para o cavalo do Poder suportados pelas mãos sangrentas dos capitalistas, dos militares sem honra e dos papas.
Não tenhamos medo das palavras.

As bombas, a Cruz e o Perdão

Nos inícios da década de 30, o panorama social espanhol era de ruína. Em 24 milhões de habitantes, metade não sabia ler nem escrever. Oito milhões viviam na pobreza ou na completa miséria. Se 1 quilograma de pão custava 1 peseta, os salários médios dos operários oscilavam entre 1 e 3 pesetas diárias. Entretanto, 200 000 fortunas absorviam a quase totalidade do rendimento nacional. Havia latifúndios com o tamanho de uma província.
A Igreja Católica era servida por 20 000 monges ordenados, 31 000 padres, 60 000 religiosos e religiosas e geria 5000 conventos. Controlava jornais e publicações importantes que coordenava através de uma organização de Jesuítas, a «Institution Publica de la Enseñanza». Dirigia uma rede de 5000 ordens de caridade. Imperava no mundo financeiro («o dinheiro é muito católico», dizia ironicamente o povo). A Igreja representava, sem qualquer dúvida, a força mais poderosa e a mais organizada de Espanha.
O Exército regular contava com 15 000 oficiais (1 oficial por cada 6 soldados) e com 800 generais (1 general por cada 100 praças). O comando estava rigidamente hierarquizado e tinha fortes bases militares extracontinentais, sobretudo em Marrocos e nas Canárias. Com o lado republicano passava-se justamente o oposto: não tinha tropas regulares, substituídas por milícias armadas formadas por voluntários, sobretudo por operários e camponeses. Depois, a guerra «civil» internacionalizou-se rapidamente. Do lado republicano, com a vinda de «Brigadas Internacionais» de voluntários. O lado fascista foi reforçado com dezenas de milhares de soldados bem treinados, alemães e italianos, integrados na «Legião Condor» e na Divisão «Littorio», italiana, que também incluía os voluntários fascistas dos «camisas negras» e dos «flechas negras». Dos arsenais nazi-fascistas vieram os Junkers com torrentes de bombas e os temíveis canhões dos navios de guerra. Guernica foi para eles uma prova de exame. Quando se fez o balanço final da guerra, contou-se um milhão de mortes, dois milhões de presos, quinhentos mil exilados e quinhentas mil casas destruídas. Tudo isto em três anos.
Desses tempos ficou muita documentação reveladora. Bem podem clamar os bispos espanhóis e o Vaticano que «de nada sabiam» para logo serem desmentidos pela evocação dos seus próprios discursos. Por exemplo, sobre a guerra civil declarava o Primaz das Espanhas, cardeal Goma y Toma: «A guerra, um dos maiores flagelos da humanidade, é por vezes o remédio heróico, o único que pode voltar a pôr as coisas em ordem e fazê-las reentrar no império da paz. É por isso que a Igreja, a Filha do Príncipe da Paz, abençoa os emblemas da guerra.»
Recordem-se igualmente as arengas do Bispo de Burgos: «Vós, que vos dizeis cristãos! Porque haveis tolerado no vosso seio e empregado até, ao vosso serviço, operários ligados a organizações hostis ao nosso Deus e à nossa Pátria? Devíeis ter sido para com essa gente como a água e o fogo. Que o seu sémen se extinga – o sémen do Mal – o sémen do Demónio. Porque, na verdade, os filhos de Belzebu são também os inimigos de Deus!».
As citações deste tipo, por parte da hierarquia católica são infindáveis. Falta espaço para as incluir aqui. Como, por exemplo, aqueles sermões do cardeal de Tarragona que dizia: «Abençoados os canhões que abrem brechas onde florescerá o Evangelho!». Em jeito de remate, lembrem-se apenas as palavras de Franco quando proclamou a vitória fascista. Disse o seguinte, a respeito dos ódios e do perdão: «É necessário liquidar os ódios e as paixões deixadas pela guerra. Porém, o esquecimento da culpa não pode ser feita à maneira liberal, com amnistias monstruosas e funestas. Ele deve ser cristão, com o resgate pelo trabalho, acompanhado de arrependimento e penitência. Todo aquele que pensar de outra forma é inconsciente ou traidor. Em Espanha, ou se é católico ou nada se é.»


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