Revolução de Outubro

Francisco Silva
Enquanto os transportes aéreos me vão pondo aqui e acolá, as horas que demoram têm que ser preenchidas… até porque é tempo que se gasta e, portanto, não pode passar outra vez - cá está, a célebre metáfora da água do rio que não repete a sua passagem pelo mesmo sítio! E, para além de escrever, de pensar, de jogar no computador, de ver filmes ou sketches humorísticos, ouvir música, conviver, sendo o caso, estando à janela, olhar para o mundo em baixo, sei lá que mais, está ainda a leitura, que talvez seja a prática mais utilizada a bordo - então agora, quando as refeições estão reduzidas a quase nada, os períodos de leitura conhecem uma duração média em crescendo em relação ao que acontecia até esta fase de agora, uma fase low cost; pois claro, baratinha, mas em inglês tem mais pinta, é mais avançada tecnologicamente, como diria, acho assim, o nosso Primeiro!
No caso, tratou-se de uma viagem até à Costa do Pacífico e volta, durante a qual, incluindo parte de três noites sob efeito de um jet lag de 8 fusos horários, li um livro que acabado de adquirir na véspera da partida de uma cidade europeia, ao fazer uma pequena ronda de livrarias na avenida principal, já depois das sete da noite - que elas estavam abertas até às oito; lá comprei o livro depois de o compulsar em diversas livrarias, comprei-o onde faziam um desconto de 10% - livro de divulgação na área da lógica, da matemática, sobretudo desta e sem fórmulas, passando pela epistemologia da ciência, e também por esta propriamente dita. Que digo eu? Livro de divulgação, melhor direi, ensaio de interesse para o público em geral e não dirigido a especialistas. Mais, um livro desenvolvido baseado numa série de programas que o autor, professor universitário de matemática da mesma cidade, aliás, com assinalado êxito mediático - de massas, popular -, tinha proferido na televisão pública do seu país.
O conteúdo ia desde o Ulisses homérico - melhor, desde as mentiras de Ulisses -, passava por uma série dos mais conhecidos filósofos/lógicos/matemáticos da Antiguidade Clássica, ia por aí fora, por todos esses nomes «cristãos e ocidentais», via Revolução Científica, e chegava ao último e revolucionário capítulo, não sem pelo caminho não se ter coibido de citar mesmo Lénine - o que não é normal numa época como a que vivemos, pensei eu logo.
O tal último e revolucionário capítulo começava por nos falar de uma notícia de truz, dada na imprensa da altura, no Times, no mesmo dia em que passava o segundo aniversário da Revolução de Outubro - facto acerca do qual o autor do livro fez o melhor que pôde para evidenciar. A notícia de truz, a notícia científica revolucionária dada pela Royal Society e pela Royal Astronomical Society era a da confirmação da Teoria da Relatividade Geral de Einstein: a luz propaga-se mesmo em curva, em função da distribuição dos corpos celestes no espaço, e tal tinha sido medido durante um eclipse, quer desde Sobral no Brasil quer na Ilha do Príncipe, que o autor dava como sendo parte da «Guiné Espanhola»!
Ah, sim, da Guiné Equatorial Espanhola ou de São Tomé e Príncipe? Chegado a terra, eu, ligado à Internet, pesquisei o seu endereço e enviei uma mensagem por email ao autor a notar este erro - que se tratava de uma antiga colónia portuguesa, hoje República Democrática de São Tomé e Príncipe. Dois dias depois, a 7 de Novembro, respondeu-me a agradecer e a dizer que iria corrigir o erro na próxima edição (o obra, popular, já vai na 4.ª edição). Eu, notando então a coincidência da data em que estávamos a comunicar, 7 de Novembro, 90.º aniversário da Revolução de Outubro, não resisti à tentação de, acto contínuo, lho fazer notar. E ele, o autor do livro, também acto contínuo, fez-me chegar a sua vertiginosa reacção: «Long live the Great Revolution»! - em inglês, pois era nesta língua em que estávamos a comunicar.
Portanto, «Viva a Grande Revolução». Quem diria que tinha aí mais um facto comemorativo do 90.º aniversário da Revolução de Outubro? Foi, pois, grande a comoção que senti com a prenda. Quem, de fora da utilização corrente do correio electrónico, deste hábito da época actual, poderia imaginar que, através de um meio de comunicação destes, dois correspondentes que não se conhecem, que nunca mais gordos se viram, poderiam chegar a tal comunhão no dia do aniversário da Grande Revolução, de um acontecimento principal, único, na história da Humanidade, mas quando vivemos nesta época de desenfreada globalização neoliberal? Pois não: «Viva [mesmo] a Grande Revolução de Outubro».


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