Primeiro-ministro britânico perdeu autoridade e prestígio

Drama no n.º 10 de Downing Street

Manoel de Lencastre
A atmosfera dos primeiros meses do novo governo britânico, com o escocês, Gordon Brown, no lugar de primeiro-ministro, perdeu o entusiasmo que se lhe sentira, de início. Depois de toda a gente se ter posto de acordo em que, finalmente, entrara para o n.º 10 de Downing Street um governo competente e dedicado ao seu trabalho, o que contrastava com tudo aquilo que se vira nos dias alucinantes e desastrosos de Tony Blair, o optimismo e a alegria de governar a Grã-Bretanha e ter uma palavra a dizer nos negócios do mundo, desapareceu como se por milagre.
Surgiu um estranho confronto com a realidade da intriga política que parecia afastada do dia a dia do poder mas que os «assassinos» do Partido Conservador e de quase todos os média do país não tinham esquecido. A hora do acerto de contas com Gordon Brown, que chegara ao poder sem o espectáculo circense da democracia no capitalismo, chegara.
Estabelecera-se uma anuência nacional à volta deste governo. A verdade é que a nova equipa do Partido Trabalhista tivera de lidar nos seus primeiros meses de existência com ameaças terroristas no centro de Londres e em Glasgow e com as mortíferas cheias que envolveram e horrorizaram toda a zona de Sheffield e todo o centro de Inglaterra. E, também, com o terrível impacto das mortes diárias entre as forças militares destacadas para o Iraque e o Afeganistão, com as múltiplas e sempre impúdicas pressões do governo de Washington cujo interesse estava em agarrar essas forças britânicas nas guerras criminosas em que a administração Bush se envolveu beneficiando da dócil solidariedade do empregado, Tony Blair, com um assustador aumento da criminalidade juvenil, com a falência do Northern Rock, um importante Banco. Toda a Grã-Bretanha se declarava espantada com o zelo do novo governo. Personalidades ligadas aos partidos da oposição começavam a abandonar esses partidos e aderiam aos trabalhistas. Nas sondagens, a popularidade de Gordon Brown, do Labour Party e do governo ganhavam ímpeto, um ímpeto inesperado e sólido. Citavam-se as palavras do primeiro-ministro pronunciadas após a sua investidura no cargo: «Continuarei a ouvir a voz do povo britânico e a aprender com ele. Sei que nos é imperativo mudar. Mudar, para melhor, o National Health Service (Serviço Nacional de Saúde), o nosso sistema escolar e educacional, o parque residencial com novas construções de casas que o povo possa pagar, mudar para que volte a confiar-se no governo e o estilo de vida britânico se consolide ainda mais».
Se Gordon Brown decidisse entre 5 e 7 de Outubro convocar eleições gerais cuja realização ocorreria, provavelmente, a 1 de Novembro, a vitória dificilmente lhe fugiria e o primeiro-ministro ficaria com tempo para trabalhar com toda a calma do mundo nas reformas e nas mudanças que o seu ideal exige. Nas condições actuais, Gordon Brown, como líder trabalhista em substituição de Tony Blair, tem dois anos para governar até que a convocação de eleições se torne obrigatória. O primeiro-ministro, portanto, homem avisado, foi pensar.

O medo fez reagir os tories

Aquele problema da falência do Northern Rock andava a preocupar toda a gente. Ninguém mais esquecerá as intermináveis filas de povo que tinha as suas economias depositadas nesse Banco e pretendia recuperar o seu dinheiro quando a economia do capitalismo, aos olhos de todo o mundo, deixara de merecer a mínima confiança. E atrás do Northern Rock não viriam aí outras falências? O povo já falava no Alliance & Leicester. Os economistas e os jornais mencionavam assustadores prejuízos sustentados por grandes bancos de investimentos como o HSBC (Hongkong & Shangai Banking Corporation), o Merrill Lynch, o UBS (Union de Banques Suisses), o CityGroup, os Bear Sterns, os Morgan Stanley e Lehman Brothers, o Credit Suisse, o Deutsche Bank, o Commerzbank.
Em toda a Grã-Bretanha se adensavam filas de povo, quase sem fim, numa longa espera à porta das 76 filiais do Northern Rock. A todo o momento, o Banco deixaria de ter fundos suficientes para atender os pedidos de levantamentos dos seus depositantes. O dinheiro que estes haviam deixado à guarda da então prestigiosa entidade bancária, confiantemente, mas que a direcção do Banco, envolta nas impenetráveis teias mais íntimas do capitalismo global, dissipara na compra de lotes de hipotecas sobre milhares de casas de reduzido valor nos Estados Unidos, deixara, simplesmente, de existir. Se o Northern Rock fechasse as portas, a crise ganharia incontornáveis proporções e atingiria, logo, todos os outros Bancos. Obviamente, o governo de Gordon Brown teria de fazer alguma coisa. Por isso, o primeiro-ministro mandou chamar o presidente do Banco de Inglaterra, Mervyn King.

A alma do capitalismo está ferida e a sangrar

Gordon Brown intimou King a fornecer ao Northern Rock todo o dinheiro de que este necessitasse para fazer frente aos pedidos de levantamento de milhares de milhões de libras a que os seus clientes desejavam proceder. O primeiro-ministro sabia, evidentemente, que entrava numa perigosa avenida e que a sua lua de mel com o povo britânico estava no fim. Perante a resistência do governador do Banco de Inglaterra, homem de fortes princípios financeiros, Gordon Brown fez-se rodear de toda a equipa da Tesouraria (o equivalente ao Ministério das Finanças) e da Autoridade Nacional para os Serviços Financeiros a cujas decisões conjuntas King teve, por fim, de submeter-se.
Agora, o governo declarava que o Banco de Inglaterra garantia os depósitos e as poupanças do povo em todo o país e em todas as instituições de crédito, uma medida que envolvia imensos riscos mas que, na realidade, impediu a temida mas já esperada corrida geral aos bancos. Mais controversa foi a declaração do n.º.10 de Downing Street que passou a exigir aos Bancos garantias nem sempre sólidas, às vezes, garantias de duvidosa qualidade, contra os empréstimos concedidos pelo Banco de Inglaterra. Mas o sistema bancário começava a intimar que não aceitava empréstimos. O que os bancos queriam era que o governo lhes desse dinheiro a rodos, sem quaisquer garantias.
Obviamente, a crise provocada pela quebra do Northern Rock e pela falência do sistema dos empréstimos precários nos Estados Unidos contra hipotecas de casas de madeira, de reduzido valor, demonstrava que o medo avançava na City e que a alma do capitalismo estava em sangue. A verdade é que, do outro lado do Atlântico, as pessoas fugiam das casas (muitas, decrépitas) que haviam comprado e não podiam pagar. Na fuga, libertavam-se das hipotecas. Os bancos americanos de todas as categorias ficaram com muitos milhares de casas na sua posse. Por outro lado, os bancos britânicos e outros, um pouco por toda a Europa, perderam e continuam a perder biliões de libras neste desastroso negócio. Ainda tem de ser escrita a calamitosa história do sistema da compra de casas de habitação contra hipoteca tal como os anglo-americanos o inventaram e fizeram expandir em quase todo o mundo até ao desastre.

Os conservadores passam à ofensiva

Os conservadores, que têm vivido uma existência menor desde que os governos de Margaret Thatcher e John Major desapareceram e o New Labour, de Blair, surgiu, viram a sua oportunidade ao prepararem a conferência anual do seu partido que teve lugar, recentemente, em Blackpool. Esta era a sua mensagem ao país: «Afinal, Gordon Brown convoca, ou não, as eleições gerais que toda a Grã-Bretanha espera?» E acrescentavam numa crescente agressividade: «Por nós, estamos preparados. Será que o primeiro-ministro tem medo do voto do povo deste país?». Logo os liberais-democratas rugiam, tentando fugir à sua habitual incerteza: «We’re ready! We’re ready!» (Estamos preparados! Estamos preparados!). Uma estranha febre eleitoral ganhou o país. Toda a imprensa britânica, conservadora na alma e na natureza, começou a publicar novas sondagens à opinião pública encomendadas ou realizadas por ela própria. Em dois ou três dias, os trabalhistas perdiam a sua larga vantagem de entre 10 e 13 pontos e apareciam, surpreendentemente, em igualdade com os tories ou, até, já em segundo lugar. A Sky News era um dos centros de propaganda dos conservadores que mais se destacava. Os seus jornalistas e editores estavam 24 horas por dia ao serviço de uma simples mensagem; «Mas, então, o primeiro-ministro convoca ou não as eleições gerais que todo o país exige?». Surgiam pavorosas notícias para Gordon Brown. Segundo certas sondagens, as circunscrições marginais com maiorias trabalhistas de entre 15 e 332 votos seriam todas perdidas. O que se passaria, então, naquelas com maiorias de entre 332 votos e, por exemplo, 3000 votos, que são muitas?

Processo de decadência

A preparação da conferência dos conservadores foi realizada por mestres da publicidade e do marketing. Tratava-se da apoteose a meia dúzia de «ministros» do gabinete-sombra, mais conhecidos, e ao líder do partido, o inefável, David Cameron, cuja ânsia de chegar ao poder não tem limites. Na larga plateia, toda a vasta burguesia inglesa pressentindo que lhe seria possível, afinal, voltar ao governo com as suas velhas receitas rebuscadas na obra de Adam Smith (1723-1790), o célebre autor de «A Riqueza das Nações», ou pensando poder copiar os métodos de Margaret Thatcher que acabou com os mineiros. Todos na esperança de que, havendo eleições, o seu partido venceria e David Cameron, como novo primeiro-ministro, acabaria com os Correios e prenderia os grevistas que recusam obedecer aos tribunais. Esperança? Os conservadores também têm medo. Em grande segredo, apesar da intensa algazarra da conferência, manifestavam receio de que a crise do sistema financeiro internacional possa obrigar Gordon Brown a nacionalizar o Northern Rock e pô-lo a trabalhar, de novo, dado o capital que recebeu do governo. Têm medo, um medo mórbido, de que o governo trabalhista, após nacionalizar um Banco, possa decidir nacionalizar outros.
No fim, o primeiro-ministro surgiu na BBC a informar o país de que o seu projecto requeria dois anos para materializar-se e não haveria tempo para eleições, portanto. «Fraco! Fraco! Fraco!» gritou toda a oposição em uníssono. Os mais esclarecidos, entretanto, concedem que Gordon Brown perdeu autoridade e prestígio ao voltar as costas ao processo eleitoral escondendo-se, talvez, das realidades. No primeiro debate realizado nos Comuns, frente ao infernal ataque dos conservadores, Brown, mostrou-se indeciso, balbuciante, um homem que talvez preferisse não estar ali. O advogado escocês deixou cair as roupagens do seu conhecido rigor e demonstrou não ter a coragem dos grandes combatentes. Nos meios trabalhistas há, já, quem diga que antes das eleições que se realizarão dentro de trinta meses, a Grã-Bretanha poderá conhecer ainda outro primeiro-ministro. E observadores, possivelmente, mais entusiasmados, afirmam que tudo isto não é um processo político normal mas, sim, o princípio do fim, o lento, ainda que surpreendente, início de um processo de decadência.

Ganhadores e perdedores

Quem ganhou e quem perdeu na crise em que o primeiro-ministro britânico se viu arrastado?
Entre os ganhadores temos de colocar, em primeiro lugar, os depositantes do Northern Rock que puderam levantar as suas poupanças, sem quaisquer descontos, como resultado da intervenção do governo; em segundo lugar é preciso não esquecer os outros bancos, os Correios, a instituição nacional das Poupanças e Investimentos, onde os ex-depositantes do Northern Rock foram deixar o seu dinheiro. Outros ganhadores: 1/ aqueles que, pressentindo a crise, venderam as suas acções no Northern Rock; 2/ os principais bancos ingleses que, apesar dos prejuízos sustentados nos Estados Unidos, receberam biliões de libras do Banco de Inglaterra contra garantias duvidosas, para trabalharem no sentido da estabilização; os mercados financeiros que, estimulados pelas medidas do Federal Reserve e do Banco Central Europeu, viram todos os seus índices voltar a subir.
Os principais perdedores numa crise de sete dias que abalou todo o sistema financeiro internacional e fez negra a vida de Gordon Brown, foram: 1/ o Banco de Inglaterra e o seu presidente, Mervyn King, que deixaram o Northern Rock entregue à sua sorte quando souberam, várias semanas antes de as filas começarem a aparecer às portas do Banco, que este perdera liquidez e teria dificuldades em enfrentar a situação; a Autoridade Nacional para os Serviços Financeiros e o seu presidente, sir Callum McCarthy, que não reagiram à política agressiva mas oportunista de empréstimos hipotecários praticada pelos directores do Banco; a Tesouraria cuja inadequada organização permitiu que a crise se desenvolvesse sem que pudesse obrigar o Banco de Inglaterra, que é independente, a agir em devido tempo; os accionistas do Northern Rock, que viram o valor do seu papel ser desvalorizado, diariamente, até perder cerca de 80% do respectivo valor nominal; a City of London, que viu por terra todas as suas teorias de que Londres é o maior centro financeiro do mundo e destruído o seu conceito de independência; nesta emergência, o mercado não tinha condições para reagir tendo o primeiro-ministro sido obrigado a chamar a si as principais iniciativas; finalmente, outra categoria de perdedores: os milhares de funcionários do Northern Rock que passaram a viver no desconhecido e os milhares e milhares de empregados em todos os bancos do mundo que operam no sector dos empréstimos contra hipoteca para a compra de casa.


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