Uma história no «História»

Correia da Fonseca
No início da década de 60, as coisas não corriam tão bem para o «Ocidente atlântico e democrático» quanto este desejaria. Tratava-se, de resto, de uma frustração antiga, remontando pelo menos ao tempo em que os exércitos nazis falharam a destruição da União Soviética enquanto Grã-Bretanha, Estados Unidos e outros prosseguiam aquilo a que Churchill, num acesso de franqueza, chamou um dia «a guerra inútil». Entende-se: inútil porque na sua óptica «guerra útil» teria sido a que unisse todas as potências capitalistas para o esmagamento da URSS, esse susto que resistira às invasões imediatamente posteriores à Revolução de Outubro e ao cerco económico e propagandístico das décadas de 20 e 30, que até conseguira um milagre de industrialização obtido pelo preço de grande dureza interna e muitos sacrifícios de diversa ordem, que não dera sinais de capitular em 45-50 perante a ameaça atómica/nuclear, que conseguia êxitos na corrida para o espaço e, com tudo isto e muito mais, se confirmava como uma das duas superpotências mundiais. Churchill, velho anticomunista militante que lançara no seu discurso de Fulton a fórmula «Cortina de Ferro» para designar o conjunto de providências não apenas militares com que o Bloco Socialista impedia o avanço capitalista para o Leste, tinha, pois, as suas razões para lamentar que a Grã-Bretanha tivesse feito a guerra errada. Mas ele, e os muitos como ele sabiam bem que o que não havia sido conseguido pelo poder das armas podia ser alcançado pela batalha ideológica e pela infiltração de elementos «amigos», daquela amizade que o Ocidente paga em dólares (e, ao tempo, talvez ainda em libras esterlinas), capazes de trabalharem no sentido da «democratização do Leste». Neste quadro, Berlim, cidade quadripartida em zonas de ocupação, funcionava simultaneamente como porta de entrada nos territórios socialistas e como montra das maravilhas ocidentais aos olhos de quem vivia do lado de lá e não tinha acesso a grandes carros, a «jeans», a aparelhagem sofisticada, a Barbies. Que apenas tinha coisas de pouco valor ou pelo menos pouco valorizadas: emprego, serviços de saúde, apoios na área cultural, educação. Pelo que o Ocidente fazia figura de paraíso na Terra bem ao alcance da mão: bastava sair pela porta de Berlim enquanto, no sentido oposto, transitavam os portadores da «democracia» que haviam de «libertar» o Leste comunista.

A que está em uso

Berlim era, pois, a um tempo, canal de hemorragia e via de livre infecção, e isto em plena situação do que se chamou Guerra Fria. Para estancar a hemorragia e travar a infecção foi erguida uma barreira que permitisse controlar entradas e saídas. Ficou conhecida como o Muro de Berlim e foi levantada a 13 de Agosto de 61. Para assinalar a data, o canal «História», distribuído por cabo, transmitiu um documentário que foi, no plano da televisão, um bom exemplo do que é a História quando escrita pelos vencedores. Ali nunca sequer foi aflorado que o Muro foi o recurso possível para que um Estado internacionalmente reconhecido, a República Democrática Alemã, pudesse defender-se de uma permanente invasão «branca» e de um constante fluxo de emigração ilegal. Recorde-se que aquele não era o tempo da livre circulação através das fronteiras, como hoje acontece em grande parte da Europa: quem quisesse passar ilegalmente a fronteira entre a Itália e a Áustria, ou entre Portugal e Espanha, ou entre Espanha e França, corria o risco imediato de ser alvejado a tiro. Como se sabe. É certo que a divisão da Alemanha em duas era especialmente penoso, sobretudo no interior de Berlim, mas recorde-se que a Alemanha una ainda não tinha em 1961 (ou em 45, data da divisão factual) um século de existência: a Alemanha unificada e «moderna» nasceu em 1871. É claro que nada disto foi dito no documentário transmitido pelo «História»: ali só houve soldados da RDA muito maus, ânsia de liberdade por parte dos que sonhavam trocar a segurança sem abundância pelo mito dos consumos fáceis e baratos. Foi a História à moda de Washington. A que está em uso. Até um dia.


Mais artigos de: Argumentos

Urumqi, terra do fim do mundo

Mão amiga - de momento não me ocorre outra expressão, senão esta que vou repetindo e tem todo o ar de lugar comum, mas nem por isso falha o alvo do seu real sentido -, portanto, mão amiga clicou na tecla e distribuiu mais uma preciosa informação, entre as muitas que, com persistência, ao longo dos anos nos vai enviando;...

Orientações católicas sobre a Educação

O primado da Igreja exige o domínio do sector do Ensino.O Concílio de Trento decidiu assim e a orientação permanece válida. Em Trento, a Igreja condenou o racionalismo e robusteceu o dogma. Mas como a Escolástica tradicional não podia opor-se já ao enorme surto do novo conhecimento e do avanço das ciências laicas, os...