Os diagnósticos

Correia da Fonseca
No ecrã do meu televisor surge, em grande plano indiscutivelmente merecido, o dr. Marques Mendes a fazer aquilo que há umas quatro décadas o vento se recusava a fazer a Manuel Alegre: a dar notícias do meu País. E as notícias que o dr. Marques Mendes traz são péssimas: fala em números catastróficos, catastróficos de «catástrofe, grande desgraça» não apenas segundo qualquer dicionário mas também e sobretudo segundo o entendimento da generalidade das gentes. É sem dúvida impressionante, mas manda a verdade dizer que não me parece surpreendente: que muitas desgraças grandes andam a abater-se sobre quem habita este País, não sobre todos, é certo, mas sobre a enorme maioria, ouço-o dizer todos os dias e, mais ainda, tenho infelizes oportunidades de o verificar directamente. É claro, porém, que uma coisa é a minha avaliação pessoal a partir do que ouço ou do que vejo e coisa diferente, de uma outra estatura, é vir o dr. Marques Mendes perante as câmaras afirmar o que afirma, garantir o que garante, do alto do conjunto de informações decerto qualificadas que lhe são fornecidas. De onde, por um lado não haver surpresa ao ouvi-lo, mas por outro lado as suas palavras suscitarem uma intensificação do alarme que decerto não sou eu apenas a sentir, longe disso, para não falar na intensificação do desespero que já toma conta de muitos dos meus compatriotas. Aliás, a verdade é que já estávamos preparados para ouvir o que ouvimos, e não estou a falar agora do duro contacto quotidiano com a realidade. É que precisamente na véspera de ver e ouvir o dr. Marques Mendes, todos pudemos ver e ouvir o dr. Paulo Portas fazer a sua oração de sabedoria no congresso do partido que é seu pelo direito de conquista, o CDS-PP. Como todos sabemos, o dr. Portas, Paulo, é um craque da expressão verbal e da oratória, pelo que faz sempre muita impressão quando na TV o vemos e ouvimos. Isto apesar da sua imagem já não ser o que era há uns anos atrás, o que em matéria de TV não é irrelevante porque a televisão também é, já se sabe, um meio de comunicação televisual, com perdão do quase pleonasmo. Ora, ao dr. Paulo Portas, ou melhor, à sua imagem, começa a faltar o ar de juvenilidade que há uns anos atrás era um dos seus encantos. Para quantos se deixavam encantar, bem entendido. É o que faz apoiar-se um homem em factores muito fugazes como a juventude infelizmente é, em vez de cuidar de outros mais duradouros embora mais difíceis de conseguir como, por exemplo, a credibilidade.

Lutar contra a doença

De qualquer modo e para o caso que vínhamos tratando, muito importa reter o que o dr. Portas, Paulo, disse acerca da situação actual do País, isto é, da gente que o habita (pois, como sempre me parece importante esclarecer, o País não é o conjunto de terras e rios, não é paisagem, são as pessoas): disse horrores, e ouvindo-o logo ficou confirmado pela sua autoridade que a vida dos portugueses está pior que péssima. Nem será exagero dizer que o doutor como que trocou por miúdos, sector por sector ou aspecto por aspecto, o que o dr. Mendes viria a designar globalmente com a palavra «catástrofe». Tudo bem, passe esta forma de expressão evidentemente contraditória com as palavras verdadeiramente alarmantes dos dois reputados líderes. Sendo assim, porém, parece óbvio que nos discursos de ambos faltou qualquer coisa que tão sábias palavras estava manifestamente a pedir, digamos assim, que seria o complemento directíssimo de tão sombrios mas certeiros e qualificados diagnósticos: o apelo veemente para que os seus respectivos seguidores, que bem se sabe serem muitos embora os do dr. Mendes sejam mais numerosos, adiram sem hesitações e com muito empenho à Greve Geral convocada para o próximo dia 30. Admite-se, naturalmente, que quer o dr. Paulo Portas quer o dr. Marques Mendes não gostam muito de greves, menos ainda quando são gerais, mas o caso é que as coisas são o que são e as palavras são também um valor que é imperioso respeitar. Ora, se o País está na situação em que ambos tão claramente definiram, não parece sequer discutível o que há a fazer: há que travar a enxurrada de medidas políticas que resultaram nessa assustadora situação que ambos sintética mas impressivamente definiram, há que aderir à Greve Geral. Um apelo nesse sentido não seria mais que o resultado de uma mínima coerência. Não os conhecêssemos nós há uns tempinhos e até poderíamos supor que um e outro apenas se haviam esquecido desse remate final para as suas palavras. Pois não basta fazer certeiros diagnósticos, é preciso lutar contra a doença. E há momentos em que a coerência surge como irmã gémea da honestidade. Também na vida política.


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