Os objectivos escondidos da «flexigurança».

A legislação laboral e o crescimento económico

Catarina Morais
A «flexigurança» enquadra-se na ofensiva contra os direitos dos trabalhadores em curso em Portugal e nos outros países da Europa. Este novo chavão aparece no Livro Verde sobre as Relações Laborais, documento de suporte às futuras alterações, agravadas, do Código do Trabalho. Faz também parte do Livro Verde da União Europeia «Modernizar o direito do trabalho para enfrentar os desafios do século XXI», onde se faz a apologia da desregulamentação do trabalho.

( Ver QUADROS anexos )

Os defensores da «flexigurança» partem da constatação de que existe segmentação no mercado de trabalho, havendo, por um lado, um grupo de trabalhadores que tem segurança no emprego e direitos, e que beneficia de formação profissional e de protecção social, e por outro, um grupo com um estatuto precário, com poucos direitos ou mesmo em situação de desemprego.
Justificam a precariedade dos segundos pela excessiva rigidez dos chamados contratos de trabalho «clássicos» dos primeiros, defendendo que se estes contratos fossem mais flexíveis as empresas contratariam mais trabalhadores porque teriam custos menores. Exortam por isso à alteração dos contratos «clássicos» em diversas vertentes, incluindo a facilidade de despedir. Em troca prometem o reforço da protecção social, nomeadamente em situações de desemprego, e o aumento das oportunidades de formação e qualificação profissional, bem como de outras medidas activas de emprego.
Portugal surge nas palavras dos defensores da desregulamentação do mercado de trabalho como o país que tem o mercado de trabalho mais rígido da UE.
A seguir demonstrar-se-á que é falsa a ideia de rigidez do mercado de trabalho português. Demonstrar-se-á ainda que a segurança no emprego não impede o crescimento e o desenvolvimento económico. Por fim, mostrar-se-á que intenções se escondem atrás do uso do termo «flexigurança».

Flexibilidade do mercado de trabalho

A afirmação de que o nosso país tem o mercado de trabalho mais rígido da União Europeia tem vindo a ser sistematicamente repetida desde há vários anos a partir de ideias veiculadas pela OCDE e é novamente referida no Livro Verde sobre as Relações Laborais.
A OCDE avalia o que chama de «rigor global da legislação de protecção do emprego» de acordo com três parâmetros: dificuldade em despedir trabalhadores com contratos sem termo, limitações à contratação a termo, dificuldade em realizar despedimentos colectivos. Segundo esta organização, Portugal tem a legislação de protecção do emprego mais rigorosa da UE e isso fica a dever-se em grande parte à dificuldade em despedir trabalhadores efectivos (despedimento individual), já que relativamente aos despedimentos colectivos a situação se aproxima da média(1).
Na prática a situação é bem diferente. Portugal é o terceiro país da UE25 com maior percentagem de trabalhadores com contratos não permanentes (19,5%), ficando apenas atrás da Espanha (33,3%) e da Polónia (25,7%)(2) e ocupa a mesma posição no emprego por conta própria (24,2%), depois da Grécia (30,1%) e da Itália (25,1%). Se juntarmos o trabalho a tempo parcial, verificamos que 40,9% do emprego total do nosso país não reveste a forma de um contrato de trabalho sem termo e a tempo completo, vínculo habitualmente tão criticado pelo neoliberalismo. Mais uma vez nos situamos acima da média da UE25, havendo apenas cinco países com percentagem mais elevada, o que contraria a ideia de rigidez.
Outra tese veiculada pelo patronato e inscrita no já referido Livro Verde da UE é a de que os contratos não permanentes e outras situações precárias surgiram como resposta à rigidez na legislação laboral(3). Para tal tese se confirmar teria que existir uma relação entre a dita rigidez da legislação laboral (ou seja, a protecção dos trabalhadores) e o nível de precariedade. Na realidade, porém, essa relação não se verifica. Portugal, apresentado como o país com maior rigidez na legislação do trabalho, tem uma percentagem de contratos não permanentes inferior à Espanha e à Polónia, que têm, segundo a OCDE, uma rigidez menor da legislação do trabalho.
Por vezes é também afirmado que os contratos a prazo são usados como período experimental, nomeadamente para os jovens (assumindo-se claramente o desrespeito pela Lei!) e que, em regra, a maioria se transforma em contratos sem termo. É falso. Segundo os dados do Inquérito ao Emprego (INE), no ano de 2006 apenas passaram a ter vínculo permanente 11% dos trabalhadores que tinham contrato a prazo no ano anterior. Isto para já não falar de outro tipo situações laborais ainda mais desprotegidas, como o falso trabalho independente, por exemplo.
A precariedade não é transitória. Em 2005, 46% dos contratos não permanentes celebrados nosso país durava há mais de três anos, percentagem apenas inferior à do Chipre (50,7%) e que compara com os 9,5% da média da UE25(4).
Outra mistificação que por vezes aparece é a de que os jovens não estão interessados em ter um emprego permanente porque tal acarreta maiores dificuldades em mudar de emprego, em experimentar profissões diferentes ou em melhorar a sua situação profissional. Na realidade, em 2005, quase 78% dos jovens portugueses dos 15 aos 24 anos com contrato a prazo estava nessa situação porque não tinha conseguido encontrar um emprego permanente, sendo de 30,5% a mesma percentagem na EU a 25. Apenas 12,1% estava nessa situação por estar em educação e formação (a média da UE 25 era de 46,6%).

Crescimento e desenvolvimento económico

Para os defensores do neoliberlismo e da desregulamentação do mercado de trabalho, a protecção do emprego é vista pela como um custo para as empresas, pelo que defendem a necessidade de a reduzir para aumentar a competitividade e promover o crescimento económico.
Mas usando a própria análise da OCDE encontram-se elementos que permitem refutar a tese do impacto negativo da protecção do emprego no crescimento económico. Basta comparar os países mais cresceram entre 2002 e 2006 e que se prevê que tenham o maior aumento do PIB em 2007 e 2008(5) com o referido indicador da OCDE («rigor da legislação de protecção do emprego»). Considerando apenas a UE a 15, os países com maior crescimento económico são a Irlanda, o Luxemburgo, a Grécia, a Espanha, a Suécia e a Finlândia. Entre os países considerados pela OCDE como tendo o maior rigor legislação de protecção do emprego encontram-se três dos atrás referidos: a Espanha (em segundo lugar), a Grécia (em terceiro) e a Suécia (em quinto).
Daqui se conclui que a segurança no emprego não é um factor impeditivo do crescimento económico e do desenvolvimento. Pelo contrário. Não só é benéfica do ponto de vista social, como é favorável ao crescimento ao propiciar condições e motivação para a aquisição de formação profissional e o aumento de competências, aumentando assim a produtividade.
São outros os factores que determinam o crescimento económico e o desenvolvimento. Vejamos alguns indicadores relativos a Portugal e aos países que apresentam maiores taxas de aumento do PIB.
1. Portugal apresenta o mais baixo crescimento do investimento total do conjunto de países em análise (no nosso país houve mesmo uma quebra de 2,9% entre 2002 e 2006). A situação é semelhante relativamente ao investimento em bens de equipamento, indicador em a evolução nacional é sistematicamente inferior aos outros países em apreciação, com excepção do Luxemburgo mas apenas no período entre 2002 e 2006, já que em 2007 e 2008 se prevê que um elevado crescimento deste indicador, superando largamente Portugal.
O mesmo acontece com o investimento público onde, apesar das diferenças não serem tão significativas, Portugal tem as menores taxas de crescimento.
2. Relativamente à ciência e tecnologia, observam-se valores superiores aos de Portugal em quase todos países considerados. Na despesa em investigação e desenvolvimento, medida em percentagem do PIB, destacam-se a Suécia (3,9%) e a Finlândia (3,5%), gastando Portugal apenas 0,8% do PIB. Quanto aos recursos humanos diplomados em ciência e tecnologia são a Irlanda (23 em cada mil jovens dos 20 aos 29 anos) e a Finlândia (17,4 em cada mil) que ocupam os lugares cimeiros. Em Portugal apenas 11 em cada mil jovens dos 20 aos 29 anos estão nessa situação.
3. O nível de educação destes países é também claramente superior ao verificado no nosso país. E isto acontece em todas as camadas etárias. No quadro pode ver-se que Portugal tem simultaneamente o nível mais baixo de diplomados com o ensino superior entre a sua população em idade activa (11%) e a maior percentagem de indivíduos que concluíram no máximo o nível mais baixo do ensino secundário(6) (77%).
Por outro lado, Portugal apresentava em 2005 a percentagem mais baixa de jovens dos 20 aos 24 anos com o ensino secundário (48,4%), sendo que em Espanha (o outro país deste conjunto com menos percentagem) 61,3% dos jovens desta faixa etária conclui o ensino secundário. Quanto ao abandono escolar precoce, a situação era a inversa, tendo Portugal a percentagem mais elevada do conjunto de países que temos vindo a analisar e os outros países, com excepção da Espanha, percentagens que não ultrapassavam os 15% e, nalguns casos, os 10%.
Além de partirem de níveis de educação base da sua população mais elevados, quase todos estes países proporcionam à sua população mais condições de participação em acções de educação e/ou formação, o mesmo acontecendo com o investimento das empresas em formação contínua. Assim, vemos a Finlândia e a Suécia com uma posição destacada nos dois indicadores (22,5% e 32,1%, respectivamente na participação da população dos 25 aos 64 anos em educação e formação, contra 4,1% em Portugal, e 1,1% e 1,3%, respectivamente, quanto aos custos laborais investidos pelas empresas em formação contínua, ou seja, sensivelmente o dobro que em Portugal).
Como se constata observando o conjunto de dados apresentados, os países da UE que têm maiores taxas de crescimento do produto são os que apresentam maiores níveis de investimento em bens físicos, imateriais e na educação e formação, o que evidencia as responsabilidades do Estado e também do sector empresarial no crescimento económico.

«Flexigurança»

A ideia de «flexigurança» não é nova na UE, havendo referências ao «necessário equilíbrio entre flexibilidade e segurança» desde 1998 nas linhas directrizes para o emprego. Só que, na altura, apenas se «convidavam os parceiros sociais a negociar acordos tendentes a modernizar a organização do trabalho, incluindo formas de trabalho flexíveis». Agora o ataque aos direitos é mais forte e menos dissimulado.
Diz o Livro Verde sobre as Relações Laborais que a «flexigurança» é uma estratégia política que tenta, deliberadamente, aumentar a flexibilidade dos mercados de trabalho, da organização do trabalho e das relações de trabalho, mas também aumentar a segurança de emprego e a segurança social, especialmente para os grupos fracos pertencentes ou não ao mercado de trabalho.
A segurança de emprego aqui referida não é a garantia de manutenção do posto de trabalho com um dado empregador mas antes a garantia (?) de manutenção de um emprego, mesmo que com outro empregador. Chamam-lhe também segurança da empregabilidade. Pode ser também segurança do rendimento (protecção do rendimento em caso de perda de trabalho remunerado).
A flexibilidade pode assumir a forma de facilidade em despedir e contratar, flexibilidade no tempo de trabalho, existência de uma pluralidade de empregadores ou ainda remuneração em função dos resultados.
O chavão da «flexigurança» tem sido usado com o objectivo de convencer os trabalhadores e a sociedade em geral de que é possível abdicar do direito à segurança no emprego porque em troca se terá mais e melhor segurança social. E para isso apresenta-se a experiência dinamarquesa. A Dinamarca combina uma baixa protecção do posto de trabalho, com uma ampla protecção social e medidas activas de emprego. Diga-se a propósito que o patronato português recusa este «modelo» pois o seu objectivo é a liberalização dos despedimentos sem dar nada em troca.
A Dinamarca é o país da UE que gasta mais com políticas de emprego (4,35% do PIB)(7). Aqui se incluem quer as medidas passivas (como o subsídio de desemprego), que representam mais de 60% do total desta despesa, quer as medidas activas (como a formação profissional, os programas de apoio ao emprego ou a actividades ou os serviços de apoio à integração no mercado de trabalho - como os centros de emprego). Em Portugal essa percentagem é apenas 2%.
É também um dos países em que a despesa em medidas de emprego por desempregado é mais elevada. Comparando com a situação portuguesa, verifica-se que os dinamarqueses gastam 4,4 vezes o que os portugueses despendem com a política de emprego. Embora a diferença seja superior nas medidas activas de emprego (5,5 vezes), é de referir que as medidas passivas por desempregado na Dinamarca absorvem 4 vezes mais recursos que em Portugal. E isto também acontece no que diz respeito ao peso no PIB (o peso das medidas passivas é de 2,67% do PIB na Dinamarca e de 1,32% em Portugal).
Como se constata através destes dados, a situação dinamarquesa é bastante diferente da portuguesa. Não só tem políticas activas de emprego eficazes, como gasta substancialmente mais na protecção aos desempregados. Por outro lado, é produto de mudanças e adaptações graduais ao longo de mais de um século e resulta também de um contexto de relações entre sindicatos e patronato diferente do que existe em Portugal.
Não é este «modelo» que o Governo (e o patronato) quer implementar em Portugal. Bastam dois exemplos para o confirmar: o Governo PS/Sócrates alterou o subsídio de desemprego para pior, enfraquecendo a protecção no desemprego e não cumpre a nem faz cumprir a legislação sobre a formação profissional.
Na verdade, o que está em causa com a «flexigurança» é a desregulamentação do trabalho, a perda de direitos e o desvirtuamento do Direito do Trabalho enquanto elemento protector do elo mais fraco do mercado de trabalho - o trabalhador. Não há que ter ilusões em relação à propaganda que visa ocultar os verdadeiros objectivos desta campanha. Pode adivinhar-se o resultado da aplicação desta nova tese do neoliberalismo se os trabalhadores e o povo nada fizessem para o impedir.
( Ver QUADROS >)

_______________

(1)Ver OCDE, Perspectives de l’emploi, 2005.
(2) Eurostat, Labour Force Survey, 2005.
(3) Este tipo de argumentação surge como reacção à denúncia dos elevados níveis de precariedade existentes.
(4) Fonte: Eurostat.
(5) Segundo as Previsões da Primavera 2007, da Comissão Europeia.
(6) 9º Ano de escolaridade no caso português.
(7) Eurostat, Labour Market Policy database. Dados de 2004.


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