A RTP como assunto
Aquilo nem começou muito mal, com Fátima Campos Ferreira a fazer uma espécie de acto de contrição, modalidade «light», em nome da RTP que, segundo a jornalista, «nem sempre foi exemplar». Ainda assim, logo Fátima deslizou para a dissolução dos sugeridos pecados da RTP nas culpas mais amplas do próprio País, e percebe-se porquê: porque no confundir é que está o ganho. Um pouco mais à frente, depois de uma um tanto despropositada referência ao caso afinal menor da saída de Marcelo da TVI, vieram imagens supostamente optimistas da Guerra Colonial, o emblemático «Adeus, até ao meu regresso, nós por cá todos bem». E foi tudo: nenhuma referência à cumplicidade com os crimes aquém-mar da ditadura, com a «eliminação» censória de verdadeiramente grandes portugueses, com a sistemática mentira acerca do País e do mundo. Paciência, já havia sido dito que a RTP «nem sempre fora exemplar» e a porta da absolvição estava assim como que aberta. Fátima passou depois ao elogio do «Prós e Contras», isto é, de si própria, e apresentou os convidados: quatro em palco, dois sentados na plateia, um só deles representando telespectadores, nenhum crítico de TV (o que não surpreende, pois é sabido que a RTP está zangada com o único que conhece), nenhum homem da cultura, da sociologia. Interlocutores concentrados, enfim. E, apesar disso, a emissão alargou-se por cerca de três horas, neste tempo se incluindo perto de meia hora para publicidade comercial, institucional ou à própria programação. Tenho como provável que a presença do presidente da RTP, Almerindo Marques, como aliás seria quase indispensável, contribuiu decisivamente para a extensão do programa. Tudo bem se boa parte do tempo tivesse sido dedicada aos efeitos de cinquenta anos da RTP sobre o País ou, dizendo-o de outro modo, ao apuramento do bem que a TV devia ter feito ao País, e não fez, dos males que porventura nele terá injectado, e não devia. Mas não aconteceu nada disso, esse arrolamento de activos e passivos ficou por fazer, e talvez em consequência dessa omissão aquelas três horas tiveram tantas fases chatas, de uma chateza quase apenas cortada pelo espectáculo ridículo da voracidade empresarial de Pinto Balsemão, disfarçada de acrisolado amor pela pura concorrência, e pelo permanente toque de paciente ironia de Augusto dos Santos Silva.
O dado que não entrou
Falou-se muito de dinheiro, o que bem se compreende: em casa de pobre conta-se muito os tostões. A gestão de Almerindo Marques foi levada em ombros, metaforicamente falando, não se tendo falado suficientemente, ou mesmo nada, da contribuição que para o seu êxito foi dada pela paciência dos espectadores (a suportarem repetições por vezes já nauseantes), pelo sacrifício dos trabalhadores da RTP e pelas condições de ordem administrativa e financeira que lhe foram proporcionadas. Porém, o mais grave é que isto de contar tostões, de optar pelo que parece barato sem cuidar a sério de saber do que se trata, não é propriamente um critério inatacável. Se a RTP, ao longo dos seus cinquenta anos (ou trinta e três, se quisermos subtrair à contagem os dezassete em que esteve a cumprir ordens do «regime autoritário», como dizem os eufemistas nada inocentes) tivesse arrancado o povo telespectador à ignorância secular a que foi condenado, à ainda generalizada convicção de que isso da cultura é um luxo inútil só próprio de gente presumida ou arcaica, se tivesse sido pelo menos uma escola elementar para o civismo e a cidadania, um exemplo de informação efectivamente plural e liberta de discriminações e preconceitos político-ideológicos, mesmo um custo aparentemente alto, digamos que próximo dos custos pagos pela generalidade dos restantes países europeus, seria barato. Mas se a RTP apenas contribuiu para adicionar à velha ignorância a sólida robustez da inconsciência, se optou por criar um lugar de degredo para onde envia todos os programas suspeitos de serem «culturais» a fim de que os cidadãos não se habituem a frequentá-los, se recusou o risco de «educar o povo», denunciado por Balsemão como se fosse o pior e o mais disparatado dos crimes, e muitas vezes aceitou mesmo a implícita virtude de o deseducar, seguindo o exemplo das operadoras privadas, então todo e qualquer preço é caro e inaceitável, mesmo que pareça barato. É que há valores não-contabilizáveis que são decisivos, ainda que o dr. Almerindo Marques e muitos outros não o saibam nem sonhem, e esses é que estão na raiz do que é imperioso fazer e do que é preciso recusar. Ao debate de perto de três horas faltou quem apresentasse esse dado, e foi uma falta funesta. Mas entende-se que esse seria o dado a que, precisamente, era preciso barrar a entrada no Teatro Armando Cortez de onde o «Prós e Contras» é transmitido. Neste sentido, o programa foi um êxito: o dado não entrou. Um êxito para a RTP. Uma derrota para o País.
O dado que não entrou
Falou-se muito de dinheiro, o que bem se compreende: em casa de pobre conta-se muito os tostões. A gestão de Almerindo Marques foi levada em ombros, metaforicamente falando, não se tendo falado suficientemente, ou mesmo nada, da contribuição que para o seu êxito foi dada pela paciência dos espectadores (a suportarem repetições por vezes já nauseantes), pelo sacrifício dos trabalhadores da RTP e pelas condições de ordem administrativa e financeira que lhe foram proporcionadas. Porém, o mais grave é que isto de contar tostões, de optar pelo que parece barato sem cuidar a sério de saber do que se trata, não é propriamente um critério inatacável. Se a RTP, ao longo dos seus cinquenta anos (ou trinta e três, se quisermos subtrair à contagem os dezassete em que esteve a cumprir ordens do «regime autoritário», como dizem os eufemistas nada inocentes) tivesse arrancado o povo telespectador à ignorância secular a que foi condenado, à ainda generalizada convicção de que isso da cultura é um luxo inútil só próprio de gente presumida ou arcaica, se tivesse sido pelo menos uma escola elementar para o civismo e a cidadania, um exemplo de informação efectivamente plural e liberta de discriminações e preconceitos político-ideológicos, mesmo um custo aparentemente alto, digamos que próximo dos custos pagos pela generalidade dos restantes países europeus, seria barato. Mas se a RTP apenas contribuiu para adicionar à velha ignorância a sólida robustez da inconsciência, se optou por criar um lugar de degredo para onde envia todos os programas suspeitos de serem «culturais» a fim de que os cidadãos não se habituem a frequentá-los, se recusou o risco de «educar o povo», denunciado por Balsemão como se fosse o pior e o mais disparatado dos crimes, e muitas vezes aceitou mesmo a implícita virtude de o deseducar, seguindo o exemplo das operadoras privadas, então todo e qualquer preço é caro e inaceitável, mesmo que pareça barato. É que há valores não-contabilizáveis que são decisivos, ainda que o dr. Almerindo Marques e muitos outros não o saibam nem sonhem, e esses é que estão na raiz do que é imperioso fazer e do que é preciso recusar. Ao debate de perto de três horas faltou quem apresentasse esse dado, e foi uma falta funesta. Mas entende-se que esse seria o dado a que, precisamente, era preciso barrar a entrada no Teatro Armando Cortez de onde o «Prós e Contras» é transmitido. Neste sentido, o programa foi um êxito: o dado não entrou. Um êxito para a RTP. Uma derrota para o País.