O curso das mudanças

Francisco Silva
Tagarelou-se muito, sobretudo a partir do último quartel/últimas duas décadas do século XX, acerca dos impactes das «novas tecnologias» ao nível do trabalho e da produção e, em geral, ao nível das nossas vidas, do dia-a-dia para além do trabalho - quando o temos -, isto é, o efeito das «novas tecnologias» nas actividades de reprodução da nossa força de trabalho, incluindo o lazer/entretenimento, para além do comer, dormir, vestir, calçar, etc. Eram, por exemplo, os cenários traçados no «Choque do Futuro» de Alvin Toffler. Agora, passada uma certa fase de euforias utópicas originadas em grande parte nos EUA enquanto condutores de um Ocidente ainda em fase de combate ao «comunismo» (em particular corporizado na «guerra fria» - que, afinal, ainda aí está na condução dos negócios políticos do Ocidente), agora, com muitas das coisas, então referidas, a já nos terem entrado no trabalho e em casa, cumpre ir reolhando para grandes linhas de explicação - porque explicar em vez de complicar, reajustar quanto for apropriado, ajuda-nos a clarificar as linhas de actuação e decorrente mudança.
Assim, ao abordar-se a «revolução científica e tecnológica» ocorrida nas últimas décadas, e deixando de lado, para o caso deste texto, os desenvolvimentos havidos na Biologia, incluindo a área molecular e as aplicações tecnológicas - biotecnologia, e em particular a engenharia genética, etc -, bem como as novas fontes de produção energética, a empresa espacial e a emergente nanotecnologia, deixando-as, portanto, de lado, devem ser destacados os papeis desempenhados pelos avanços maciços havidos nos transportes, nas (tele-)comunicações e nos computadores/tecnologias da informação. Com efeito, querendo procurar as bases materiais das mudanças de fundo por que passamos, servem-nos antes de tudo os impactes combinados das, chamemos-lhes assim, «comunicações e transportes» - das «comunicações e transportes», claro, impregnadas, permeadas, profundamente pelas tecnologias da informação.
São estas alterações infra-estruturais - em germe, e posterior desenvolvimento, desde, a máquina a vapor, antes, e da telegrafia, acompanhadas do computador desde meados do século XX - que, evoluindo, cruzando-se e amadurecendo, estão na raiz da situação contemporânea que está a «permitir» um processo globalização tendo, como resultado mais visível, a emergência da Ásia - em particular a China e também a Índia - como «centro» do novíssimo Mundo. Sim, porque é chegada a vez - o momento histórico - do Ocidente, no mínimo em decadência relativa, passar o testemunho. Está a sair-lhe o tiro da globalização pela culatra, se bem que ainda tenha argumentos para jogar - refiro-me evidentemente aos EUA.
Argumenta-se por vezes que foram os portugueses os primeiros a globalizar. É certo terem iniciado um processo com algumas características de tal movimento. Mas a verdade é que, nesse tempo, as bases científicas e tecnológicas e as decorrentes infra-estruturas de «comunicações e transportes» necessárias ainda a Humanidade não as tinha criado. Mais não poderia ter sido conseguido no século XVI.
Agora tudo é diferente. As comunicações entre as pessoas, entre estas e as máquinas, e entre as máquinas, cruzam o globo de forma que, para todos os efeitos práticos, nos parece instantânea, permitindo, entre outras coisas, um fluxo permanente de transacções da esfera financeira ou reuniões multilaterais de negociação e decisão entre direcções de organismos e grupos de pessoas estando, vivendo e trabalhando em pontos diferentes do mundo, em qualquer dos seus 24 fusos horários. Estas possibilidades de comunicações combinadas com um eficiente sistema de transportes de pessoas e mercadorias, eficiente em termos de segurança e de baixo risco, mas também eficiente no sentido de baixos custos proporcionando a sua utilização maciça, conduziram à expansão imensa dos processos de «deslocalização» de produção de bens e serviços. «Deslocalização», se assim se pode chamar por extensão de linguagem, inclusive registada ao nível das actividades de I&D(1) : a China já é o segundo país do mundo nesta matéria e a Índia - de onde já não é necessário emigrar, sobretudo para os EUA, para desempenhar funções altamente qualificadas - já ia no oitavo lugar há algum tempo.
Enfim, nós continuamos a ver o que dá isso do Plano Tecnológico, a procurar cumprir os objectivos da UE para 2010 e entretidos com as nossas parcerias americanas. Chegaremos lá?

(2) I&D - Investigação & Desenvolvimento


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