Enfrentar o aborto clandestino

A urgência de uma lei

Fernanda Mateus (Membro da Comissão Política)
É preciso e urgente aprovar uma lei que obrigue o Estado a reparar a injusta e prolongada violência que exerceu sobre sucessivas gerações de mulheres.

É necessário que a Assembleia da República exerça finalmente as suas competências legislativas

Uma nova lei que dê expressão à vontade da maioria dos eleitores que, no passado domingo, disseram SIM à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, realizada por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado.
Após uma prolongada luta pela despenalização do aborto em Portugal, em que o PCP deu um insubstituível contributo, é necessário que, finalmente, a Assembleia da República exerça as suas competências legislativas.
E seria intolerável que o processo legislativo pudesse, agora, ser pretexto para atrasar a alteração do quadro legal que urge concretizar, ou para desvirtuar o seu conteúdo, com base numa pretensa «consensualização» em torno de uma «lei prudente», o que representaria uma grave e inadmissível cedência aos argumentos usados pelo conjunto das forças que se opõem à despenalização do aborto e que viram os seus argumentos serem derrotados no Referendo.
A verdade é que não tem sido por falta de soluções legislativas que o aborto clandestino se manteve até aos nossos dias. Há mais de duas décadas que a Assembleia da República, por iniciativa do PCP, vem discutindo projectos de lei com sentido despenalizador, que foram inviabilizados pela oposição sistemática das maiorias de partidos de direita, mas igualmente em resultado de vacilações e cedências, ao longo dos tempos, por parte do Partido Socialista.
E, no momento presente, o processo legislativo deve centrar-se na aprovação de uma lei que proceda às necessárias alterações legais, tanto no plano criminal como na necessidade de responsabilizar o Serviço Nacional de Saúde em assegurar a saúde e privacidade às mulheres que necessitem de interromper uma gravidez. O conteúdo desta lei tem de ser claro. Não pode permitir futuras interpretações restritivas e violações ao seu cumprimento nos serviços públicos de saúde, como tem acontecido ao longo de mais de vinte e quatro anos com a Lei 6/84, que despenalizou o aborto em algumas circunstâncias.
O Comité Central do PCP pronuncia-se não só pela concretização, nas próximas semanas, do processo legislativo mas, igualmente, pela salvaguarda de questões centrais, em que se destacam: a necessidade da indispensável informação e apoio a assegurar à mulher, não a confundindo com intoleráveis pressões psicológicas; a criação de condições que garantam a absoluta reserva de anonimato a que tem direito, prevenindo e condenando quaisquer propósitos de humilhação ou exposição pública; a organização e preparação do Serviço Nacional de Saúde para responder ao cumprimento da lei, não permitindo que o direito à «objecção de consciência» individual dos médicos seja confundida com a criação artificial (e ilegal) de serviços de saúde «objectores» à aplicação da lei.

Pela dignidade e direitos das mulheres

A 11 de Fevereiro foram derrotadas as concepções mais obscurantistas e conservadoras, assentes na subalternização das causas do aborto clandestino e na defesa da sua criminalização como parte integrante das políticas de família e de natalidade. Tratou-se de uma importante vitória da democracia, da liberdade, da dignidade e saúde das mulheres.
Contudo, as baixas taxas de fecundidade e os crescentes constrangimentos económicos e sociais que condicionam o direito da mulher e do casal a decidir o momento e o número de filhos, bem como a ausência de políticas adequadas de protecção da função social da maternidade e paternidade e da família, continuam em curso pela acção do Governo do Partido Socialista. Acentua-se a degradação das condições de vida e de trabalho das famílias das classes trabalhadoras, a redução de direitos, agravam-se as desigualdades sociais e as situações de pobreza. As medidas que têm vindo a ser tomadas e que se avizinham em matéria de natalidade e de apoio à família por parte do Governo do PS estão muito longe de corresponder às necessidade de justiça social, de promoção da igualdade de direitos das mulheres e das famílias das classes trabalhadoras.
Estas são questões que continuam na ordem do dia e que impõem o reforço da luta organizada das mulheres, em particular da mulher trabalhadora, o que deve ter uma premente expressão nas lutas a travar já no próximo dia 2 de Março – na acção convergente «Juntos pela mudança de políticas» – e, igualmente, no 8 de Março, Dia Internacional da Mulher. Porque a luta continua.
Continua pela rápida aprovação de uma nova lei de despenalização do aborto e pelo cumprimento dos direitos sexuais e reprodutivos; contra o desemprego e a instabilidade de emprego; por trabalho com direitos; por melhores salários; pelo respeito dos direitos de maternidade e paternidade nos locais de trabalho; pela criação de uma rede pública de creches e jardins-de-infância; por uma eficaz resposta em planeamento familiar e pela implementação da educação sexual nas escolas.


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