Da dificuldade de poupar

Correia da Fonseca

No final de Outubro passado a televisão abordou fartamente o tema. Tinha desculpa ou, se se quiser, pretexto: o dia 30 daquele mês era o Dia Mundial da Poupança. Agora, sem desculpa ou pretexto que eu tenha notado salvo um qualquer dado estatístico entre esses muitos que estão sempre a chuviscar, o assunto voltou à TV. Sob a forma de uma espécie de queixa ou de recriminação: os portugueses poupam pouco, muito pouco. E, segundo nos dizem, deviam poupar, deviam seguir o exemplo da generalidade dos outros povos da União Europeia, que são poupadinhos. Deviam poupar, ao que nos dizem, pelo menos por duas fortes razões: para amealhar para a velhice, quando os proventos são menores e as despesas crescem devido sobretudo às doenças que são a marca dessa última fase da vida, e porque um significativo volume de poupanças à escala nacional é benéfico para a economia do País. Excelentes razões, como bem se vê mas com algumas fragilidades. Falemos de uma primeira: Para poupar dinheiro não basta querer, é preciso tê-lo, ao dinheiro; e tê-lo em quantidade bastante para que dele haja algum sobejo depois de despender o indispensável e o inevitável. Ora acontece que a esmagadora maioria dos portugueses tem óptimas condições para acumular necessidades insatisfeitas, por vezes mesmo básicas como aviar na farmácia uma receita mais pesada em termos de custos ou mandar reparar as solas rotas de uns sapatos de Inverno, mas poucas ou nenhumas condições para acumular desejáveis mas inexistentes excedentes dos seus proventos. E não espanta que seja assim: Como é sabido mas pelos vistos muito esquecido, é em Portugal que estão os salários mais baixos da Europa, pelo menos de uma imaginária linha Berlim-Viena para cá, e onde os apoios à doença e ao desemprego são mais débeis. Depois de se saber isto e porventura muito mais que aqui não ocorre nem cabe, é quase uma crueldade vir censurar os portugueses em geral por não pouparem, por serem uns estouvados que não pensam no futuro. Concretizando um pouco: por não subscreverem um PPRzinho ou por não depositarem na banca aforros interessantes que a banca, por seu lado, irá investir não tanto no apoio a investimentos produtivos quanto a especulações bolsistas que dão menos trabalhos e mais lucros.

Um apa­rente mis­tério

E, contudo, não é verdade que os portugueses, a generalidade deles, não poupe ao longo da vida com vista ao futuro então ainda mais ou menos distante. Tomando como exemplo concreto um sujeito que conheço lindamente e que reside na casa onde moro, direi com inteira verdade que ao longo de quarenta anos, pelo menos, todos os meses pôs de parte uma fracção significativa do seu salário para se assegurar de que não teria uma velhice inteiramente desprovida no plano financeiro quando já não pudesse trabalhar na sua profissão. Só que não foi depositá-la aos balcões do banco que lhe pareceu mais simpático: entregou essa mensal poupança ao Estado, que lhe pareceu pessoa séria e de confiança e que, por seu lado, lhe garantia uma pensão de reforma quando entrasse na velhice em princípio inactiva. De facto, o sujeito recebe agora do Estado, mês após mês, uma pensão de reforma. Dizem-lhe, porém, uma coisa que ele entende mal ou que de todo não entende: que a pensão que recebe anda a ser financiada pelas poupanças, pelos chamados descontos, dos seus filhos e dos filhos dos outros, sinal claro que ao longo dos anos entregara e que por vezes tanta falta lhe fizera não valeu de nada, como que se esfumou. Compreensivelmente, há certos dias em que o homem fica a pensar neste aparente mistério e não atina com uma resposta sólida. Uma coisa, porém, sabe ele: poupar, poupou; o que não fez foi meter a poupança debaixo do colchão nem entregá-la na banca para que outros se deitassem sobre ela. Que venha agora a TV, e por detrás dela decerto cavalheiros sábios e ilustres, acusá-lo de desgovernado, de estouvado, de estoira-vergas, é que lhe parece insuportavelmente injusto. E fica com uma medonha vontade de recusar a acusação, de contra-atacar lembrando que outros que podiam poupar bem mais que ele preferem comprar os já emblemáticos e numerosos carros topo-de-gama, fazer férias em longínquas e custosas paragens, coisas assim. Que esses, só esses e não a generalidade dos portugueses, é que deviam ser convocados para o prudente mundo da poupança. Mas não pela TV. Porque é improvável que vejam muito TV. Por estarem diariamente ocupados em jantares de negócios onde, com amigos, decidem por exemplo se vão apoiar eu não a OPA do engenheiro Belmiro.


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