De Guantanamo à IVG
O actual comportamento político da hierarquia católica dá que pensar. Assim como há individualidades altamente ligadas à igreja ou ao Opus Dei (como é o caso de Vera Jardim) que publicamente defendem as cumplicidades do Estado português nos horrores da CIA e de Guantanamo.
Os bispos nada dizem. As condições de vida dos portugueses comuns são cada vez piores. Aumentam os preços dos bens de primeira necessidade e o sector empresarial do Estado é ilegalmente liquidado pelas forças no poder. A hierarquia emudece. Famílias inteiras são enviadas para o desemprego e para a miséria. A educação e a saúde são vendidas ao desbarato. O País é entregue à gula dos capitais estrangeiros. Os notáveis da igreja calam-se uma vez mais. São desprezados os direitos dos jovens e das mulheres. A tirania sucede ao diálogo. Os prelados olham para o lado e fingem que nada vêem.
Mas vem o referendo sobre a despenalização da IVG e o comportamento do clero muda da noite para o dia. Os padres envenenam os ares com o seu obscurantismo. Diziam que se iriam calar e é o inverso que fazem, da pior maneira. Sucedem-se os disparates, a partir da própria Conferência Episcopal cujo porta-voz anunciou, alto e bom som, não reconhecer ao Estado competência para legislar sobre o aborto! Ou, como a Pastoral da Família, ao anunciar que a Senhora de Fátima «chora por milhares de inocentes que podem perder a vida antes mesmo de darem o primeiro gemido». Depois, aproveita a oportunidade e faz negócio com a venda de «Terços». Não pague agora. Aguarde instruções. Não decepcionemos a nossa Mãe do Céu!
O imobilismo dos órgãos de direcção católicos não surpreende, claro está. Mas, já no plano das realidades canónicas, ele mostra-se revelador da profunda inaptidão do clero português em aceitar os princípios mentais do progresso, da democracia e da razão. Neste e noutros casos, curiosamente, o clero age contra os interesses de uma igreja que quer dar de si uma imagem de modernidade.
Há coisas que parece não fazerem sentido.
A Esfinge e D. Policarpo
Se nos dissessem que a grande maioria dos sacerdotes é ferozmente fundamentalista, teríamos todas as razões para acreditar que sim. Se acrescentassem que esse fundamentalismo de raiz é partilhado por alguns bispos, também nada nos impediria de aceitar essa acusação. Mas generalizar a denúncia do fundamentalismo cego aos principais responsáveis da igreja (nomeadamente a D. José Policarpo) é crítica que não faz sentido. O cardeal e os membros da sua equipa mais chegada são homens frios, negociadores astutos que recusam a improvisação e as reacções precipitadas. Quando falam é porque têm alguma coisa para dizer.
Este facto evidente remete para as contradições em que a hierarquia tem caído ao longo da campanha do referendo. O cardeal disse que os bispos não falavam e eles não param de falar. Defendeu que o que estava em causa não era uma questão religiosa e teve de corrigir depois o seu próprio discurso. Revelou que a estratégia da igreja neste caso tinha duas facetas principais: aos leigos católicos competia organizar e dinamizar a campanha no concreto da sua metodologia; os pastores deviam apoiar e iluminar as consciências. O que se vê é que os pastores falam pelos cotovelos sobre todas as matérias e os leigos dizem de sua justiça de forma desordenada.
Esta aparente indisciplina não encaixa na tradição da hierarquia da igreja que é a do rigor. Que estará a acontecer? Erros de cálculo, revolta das bases, fanatismo irreprimível?
Nenhuma destas hipóteses convence. Os programas pastorais são globais, a médio e a longo prazos. O actual estado político e financeiro da igreja, em lua de mel com os socialistas, é no mínimo invejável. Ora, a hierarquia nunca troca o certo pelo incerto.
Há um outro cenário possível.
A igreja controla os principais centros de decisão. A nível central, os seus objectivos (banca, poder político) foram já alcançados. Mas o êxito tem de ser confirmado no plano do Poder Local, na regionalização, na entrega definitiva de todas as áreas sociais à sociedade civil. Vencer é tudo dominar. Ainda que absorver o poder local seja tarefa espinhosa. Implicará conservar mas transformar a poderosa ala tramontana da igreja, reduzindo-a, modernizando-a e conquistando assim espaços à esquerda.
Caso se confirme esta hipótese, a questão da despenalização da IVG tornar-se-á secundária num espaço autárquico definitivamente conquistado pela igreja. Todo o poder pertencerá às redes católicas assistenciais. A despenalização conquistada em referendo será bloqueada pela inércia do governo central.
A hierarquia católica passará a dispor de um espaço ilimitado para as suas manobras de intriga e assédio.
Os bispos nada dizem. As condições de vida dos portugueses comuns são cada vez piores. Aumentam os preços dos bens de primeira necessidade e o sector empresarial do Estado é ilegalmente liquidado pelas forças no poder. A hierarquia emudece. Famílias inteiras são enviadas para o desemprego e para a miséria. A educação e a saúde são vendidas ao desbarato. O País é entregue à gula dos capitais estrangeiros. Os notáveis da igreja calam-se uma vez mais. São desprezados os direitos dos jovens e das mulheres. A tirania sucede ao diálogo. Os prelados olham para o lado e fingem que nada vêem.
Mas vem o referendo sobre a despenalização da IVG e o comportamento do clero muda da noite para o dia. Os padres envenenam os ares com o seu obscurantismo. Diziam que se iriam calar e é o inverso que fazem, da pior maneira. Sucedem-se os disparates, a partir da própria Conferência Episcopal cujo porta-voz anunciou, alto e bom som, não reconhecer ao Estado competência para legislar sobre o aborto! Ou, como a Pastoral da Família, ao anunciar que a Senhora de Fátima «chora por milhares de inocentes que podem perder a vida antes mesmo de darem o primeiro gemido». Depois, aproveita a oportunidade e faz negócio com a venda de «Terços». Não pague agora. Aguarde instruções. Não decepcionemos a nossa Mãe do Céu!
O imobilismo dos órgãos de direcção católicos não surpreende, claro está. Mas, já no plano das realidades canónicas, ele mostra-se revelador da profunda inaptidão do clero português em aceitar os princípios mentais do progresso, da democracia e da razão. Neste e noutros casos, curiosamente, o clero age contra os interesses de uma igreja que quer dar de si uma imagem de modernidade.
Há coisas que parece não fazerem sentido.
A Esfinge e D. Policarpo
Se nos dissessem que a grande maioria dos sacerdotes é ferozmente fundamentalista, teríamos todas as razões para acreditar que sim. Se acrescentassem que esse fundamentalismo de raiz é partilhado por alguns bispos, também nada nos impediria de aceitar essa acusação. Mas generalizar a denúncia do fundamentalismo cego aos principais responsáveis da igreja (nomeadamente a D. José Policarpo) é crítica que não faz sentido. O cardeal e os membros da sua equipa mais chegada são homens frios, negociadores astutos que recusam a improvisação e as reacções precipitadas. Quando falam é porque têm alguma coisa para dizer.
Este facto evidente remete para as contradições em que a hierarquia tem caído ao longo da campanha do referendo. O cardeal disse que os bispos não falavam e eles não param de falar. Defendeu que o que estava em causa não era uma questão religiosa e teve de corrigir depois o seu próprio discurso. Revelou que a estratégia da igreja neste caso tinha duas facetas principais: aos leigos católicos competia organizar e dinamizar a campanha no concreto da sua metodologia; os pastores deviam apoiar e iluminar as consciências. O que se vê é que os pastores falam pelos cotovelos sobre todas as matérias e os leigos dizem de sua justiça de forma desordenada.
Esta aparente indisciplina não encaixa na tradição da hierarquia da igreja que é a do rigor. Que estará a acontecer? Erros de cálculo, revolta das bases, fanatismo irreprimível?
Nenhuma destas hipóteses convence. Os programas pastorais são globais, a médio e a longo prazos. O actual estado político e financeiro da igreja, em lua de mel com os socialistas, é no mínimo invejável. Ora, a hierarquia nunca troca o certo pelo incerto.
Há um outro cenário possível.
A igreja controla os principais centros de decisão. A nível central, os seus objectivos (banca, poder político) foram já alcançados. Mas o êxito tem de ser confirmado no plano do Poder Local, na regionalização, na entrega definitiva de todas as áreas sociais à sociedade civil. Vencer é tudo dominar. Ainda que absorver o poder local seja tarefa espinhosa. Implicará conservar mas transformar a poderosa ala tramontana da igreja, reduzindo-a, modernizando-a e conquistando assim espaços à esquerda.
Caso se confirme esta hipótese, a questão da despenalização da IVG tornar-se-á secundária num espaço autárquico definitivamente conquistado pela igreja. Todo o poder pertencerá às redes católicas assistenciais. A despenalização conquistada em referendo será bloqueada pela inércia do governo central.
A hierarquia católica passará a dispor de um espaço ilimitado para as suas manobras de intriga e assédio.