Luzes e sombras

Leandro Martins
Gosto de supers e de hipers. Não se trata, no que me diz respeito, de algum pendor consumista, nem o chamado shopping alguma vez me seduziu. Mas gosto de passear nas avenidas, travessas e becos, praças e rotundas iluminadas e pejadas de cores. O que mais me atrai, entretanto, nessas megalópoles abastecedoras é o seu carácter de «cidade». Parece que ali estão todos e que ali está tudo o que é preciso para que uma civilização funcione. Ricos de carrinhos a abarrotar e pobres de saquinho na mão. E, quando vemos um frango numa prateleira de farinhas, é sinal de que alguém fez uma escolha de última hora e de últimos tostões – o dinheiro não dava para a carne, vá lá um pacote de bolachas. E temos assim avenidas de farináceos, alamedas de televisões, boulevards de carnes e de peixes, ruas de apetrechos escolares, travessas de produtos de beleza, praças de frutas e pracetas de congelados, pátios de bebidas, rotundas de móveis.
E também, como nas cidades, há becos. Ou daquelas ruas, como a da Betesga, onde não cabe o Rossio, em que se pode apenas dar meia dúzia de passos, mas cuja proximidade com a Baixa lhes confere um destacado plano.
É num beco assim que, no meu super de eleição – e já reparei que em muitos outros – se mostra e vende... cultura.
Logo na primeira banca estão os maiores escritores, portugueses e estrangeiros. Livros aos maços propõem-nos o melhor da literatura. Aí encontramos as obras dos grandes – Miguel Sousa Tavares, Paulo Coelho, Margarida Rebelo Pinto, Dan Brown – o do Código Da Vinci – autores do agrado de multidões de gentes bem pensantes, anunciados por toda a parte onde um jornal se folheia ou onde uma televisão se mostra. Estamos num mercado, e é legítimo pensar que o que mais se vende venha á frente.
Depois seguem-se outras bancas, dispostas hierarquicamente por valor intelectual – primeiro, os livros sobre candentes e metafísicas questões: os templários, os códigos descodificados, os segredos de fátimas e outras excelências que nos chamam a atenção para um Outro Mundo tão necessário à alma dos vivos; depois, os esclarecedores documentos sobre a história e a política, normalmente a dizer-nos que isto é tudo a mesma coisa, que se o Hitler foi um mau, o Stáline foi um pior; depois ainda os romances de emparvecer sobre os instintos mais fundos da humanidade; e depois, e depois, lá para o fundo, os escritos mais chatos, só para alguns – livros de Saramago, de Mia Couto, por exemplo. Nas bancas do fundo é difícil já a gente espiolhar. Velhotes reformados abrem aí, sobre os livros, os exemplares do Correio da Manhã ou do 24 horas, numa ânsia de saber.
No outro dia, na primeira banca, uma surpresa – o livro de Carolina Salgado, obra-prima, certamente. E, com o hábito que tenho de pensar que um super é como uma cidade paradigmática, olhei em redor. Talvez à espera de encontrar, como anfitriã desta cultura, a ministra Isabel Pires de Lima.


Mais artigos de: Opinião

Mal enterrado

O ditador chileno Augusto Pinochet morreu a 10 de Dezembro, aos 91 anos, sem ter respondido perante a justiça pelos múltiplos crimes que cometeu durante os 17 anos do seu tenebroso reinado.Pinochet morreu deixando abertas as feridas que dilaceram o Chile, e a memória intacta dos milhares de mortos, presos, torturados e...

<em>O «perigo» da unidade</em>

Ao momento da escrita deste artigo a oposição libanesa mantém há 18 dias uma concentração ininterrupta em Beirute. Contrariamente aquilo que é papagueado na comunicação social este é um poderoso movimento de massas muito diverso e plural. Nele convergem forças políticas tão diferentes como o Partido Comunista Libanês; o...

Quando a morte saía à rua

Aquele dia não foi escolhido para se tornar herói. Nem vítima. Nem símbolo.Mas merece ser memória do que ocorreu na ditadura fascista que oprimiu Portugal e os territórios das colónias portuguesas durante 48 anos. Quando a morte saía à rua.Naquele dia, na rua que agora guarda o seu nome, a PIDE assassinou a tiro José...

Provedor da treta

Uma até aqui desconhecida Comissão Nacional de Combate à Desertificação veio agora propor a criação da figura do «Provedor do Interior». Segundo o Presidente da dita comissão, «a ideia é que este órgão possa sugerir critérios próprios para as regiões desertificadas, para que estas não sejam desagregadas neste jogo de...