A boa e a má

Correia da Fonseca
No passado dia 21 foi o Dia Mundial da Televisão. As estações portuguesas não ligaram muita importância à efeméride, um pouco no estilo «mulher séria não tem ouvidos», talvez pressentindo que o Dia era propício a que alguns suscitassem questões que podiam tornar-se embaraçosas. A RTP, porém, abriu uma excepção, pequenina e sobretudo discreta: na «2:», a rubrica «Sociedade Civil», que tem a rara característica de ser claramente compatível com um serviço público de televisão, discorreu-se sobre um tema anunciado de forma curiosa. «Há boa ou má televisão?». O interessante aqui é a presença do ponto de interrogação, indicativo de uma dúvida talvez surpreendente, ou talvez não, numa sessão de TV que tem quase meio-século de idade. A eventual surpresa dilui-se um pouco, é certo, quando se verifica que dos três convidados em estúdio, todos especialistas em comunicação social, nenhum pareceu ter uma resposta clara para a questão. Ou melhor, de entre os três houve um que acabou por exprimir uma ideia sobre o assunto, mas mais como hipótese que como convicção. Adiante se falará dela mas, por agora, registe-se o que se afigura altamente provável: que o facto de a própria RTP suscitar o assunto sob a forma de pergunta pode explicar que tão poucas vezes a sua prestação tenha sido tão satisfatória quanto exigível e tantas tenha sido medíocre ou bem pior que isso. Uma estação de TV que não sabe ao certo se há televisão boa ou televisão má é uma criatura ceguinha num caminho cheio de buracos, é um navio sem bússola nem outros meios de orientação cujo destino é, já se vê, abrir rombos a meter muita água. Mas não sejamos demasiado severos exactamente quando a RTP promove um debate sobre a questão, embora seja mais adequado chamar conversa ao que podia ser debate e a conversinha decorra num canal abrigado de muitos olhares e em horário de todo impeditivo de vastas audiências. É claro que no plano do impacto público tudo seria diferente se o assunto fosse trazido para o «Prós e Contras». Mas, para nos designarmos a tanta discrição, lembremos que no «Prós e Contras» teríamos de suportar as manipulações de Fátima Campos Ferreira e que Fernanda de Freitas, apresentadora de «Sociedade Civil», tem dado claros sinais de ser de outra massa.

Dois critérios

Tudo decorreu sem nada que merecesse especial registo, numa espécie de chove-não-molha recheado de intervenções inteligentes mas estéreis, quando um dos participantes decidiu arriscar-se a responder à pergunta que era o tema do programa. Disse então, em suma, que para uma estação (suponho que privada, portanto orientada por interesses comerciais) boa televisão é a que proporciona fartas audiências e má televisão a que não as atrai. Por aí se ficou. Ficámos todos, pois, aparentemente colocados perante a validação por um especialista da chamada ditadura das audiências como critério de qualidade, em sintonia com o que a generalidade da imprensa vem adoptando e propalando. Dos restantes presentes no estúdio ninguém objectou. E, contudo, parece haver outros critérios de avaliação mais justos e, arrisquemo-nos a dizê-lo, também mais dignos. Admitamos que a vocação natural e legítima das grandes invenções que os homens vieram fazendo ao longo dos tempos não foi a de serem utilizadas para o proveito de alguns mas sim o de melhorarem o mundo e a vida de todos, de alargarem os limites do conhecimento, de concorrerem para o bem-estar geral. Sendo assim, situemos a questão no âmbito de uma comunidade, de um país. Por exemplo, deste nosso país. Parece inevitável, e até fácil, concluirmos que boa televisão será a que aborde e esclareça os grandes problemas da gente que o habita, que não se dedique a produzir anestesias ocultadoras de dificuldades e dramas protelando assim a sua solução, que promova a aquisição de cultura pois cultura é afinal o caminho para o entendimento dos homens e das coisas. E que má televisão é o contrário disto, nem é preciso alongarmo-nos em pormenores e exemplos concretos para bem o entendermos. Formulada assim, a resposta é mais extensa que difícil. Contudo, naquele estúdio não se chegou aqui, nem de longe, e é claro que foi pena. Talvez em dado momento alguém tenha dito que isso da qualidade (em TV, no caso) é subjectivo, quer dizer, qualquer coisa de inutilizável, um caminho cortado. Contudo, a qualidade existe, e para a determinar talvez seja útil acrescentar-lhe a preposição «para». Confronte-se depois com o que atrás ficou dito e talvez também neste caso se chegue a algum lado. Desde que se queira, já se vê.


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