As cambalhotas do referendo
Alinham-se forças, contam-se baionetas. Vamos ter aí outro referendo sobre a despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez. Combate a sério, batalha frontal? Talvez nem tanto. No estado em que o país se encontra, os referendos são altamente manipuláveis. Nos centros do poder político democrático residem hoje o dinheiro, a força das elites, a massa dos media que trocam a informação pela publicidade bem paga, o ópio religioso. São componentes poderosas que disporão de quatro ou cinco meses para intoxicarem a opinião pública. Por isso, no nebuloso processo que agora se inicia e à luz da verdade e da investigação nada nos deverá escapar sem crítica.
O referendo de 1998 foi, como se sabe, uma palhaçada. O governo de Guterres (Opus Dei) e o Partido Socialista (constituído por lobbies e grupos de pressão), fingiram que nada era com eles e deixaram à solta a reacção católica mais primária. A Comunicação Social deu à mentira uma generosa cobertura. A igreja, através dos famigerados grupos de «defesa da vida», aceitou baixar aos níveis mais grosseiros da viciação dos dados que, entretanto, apresentava como científicos. Ao que nos recordemos, foi nessa altura que se tornou indisfarçável o peso político determinante de que o Opus Dei dispõe no aparelho socialista. E foi deste modo que o «não» obscurantista conseguiu vencer por uma margem ridiculamente pequena, de 0,7% , e com a abstenção de 68% dos portugueses consultados.
Situações diferentes, objectivos iguais
Durante a campanha do referendo, a hierarquia católica cometeu um erro de palmatória: expôs-se demasiadamente. Por outro lado, em 1998, ainda o PS dava os primeiros passos no sentido da imposição de um socialismo moderno totalmente rendido ao neoliberalismo e à globalização capitalista. Mas havia fortes indícios de que a sua direcção caminhava no sentido da rendição total. Paralelamente, a igreja católica debatia-se também com uma difícil escolha: manter-se como religião tradicional ou transformar-se em igreja de mercado? Estas graves questões, de base comum, acabaram por aproximar o PS e o episcopado, fazendo-os convergir politicamente. O PS virou à direita e deixou de ser socialista. A igreja ajoelhou-se aos pés do capital. Só por razões de pura estratégia o PS insiste em apresentar-se como socialista e a igreja mantém o mito da opção pelos pobres.
Aguardemos que o processo se desenvolva, através da espessa nuvem da propaganda laica e religiosa. Na certeza de que as mulheres e as famílias nada de bom têm a esperar desta nova farsa. O PS tem maioria absoluta na Assembleia da República e se a sua vontade fosse realmente a despenalização da lei do IVG não precisaria de propor novo referendo. A igreja católica, tal como já é evidente, mantém-se igual a si própria: nunca põe todos os ovos num só cesto. O cardeal patriarca declarou que se abstinha. O porta-voz da conferência episcopal veio logo dizer que a igreja daria indicações de voto. Os bispos começaram a falar em coro e retomaram a linguagem de 1998. Mas o erro de então não se repetirá. Agora, a palavra de ordem pertencerá às mentes luminosas da sociedade civil : aos catedráticos católicos, aos médicos catequizados, à espiritualidade do voluntariado das IPSS, ao recatado Opus Dei, etc. O clero formará uma poderosa reserva estratégica.
Ganha corpo, entretanto, o negócio do aborto. A «lufada de ar fresco» virá de Espanha onde existem prósperas clínicas privadas que se dedicam ao ramo abortivo. Pelo menos uma delas – a Clínica dos Arcos – tem já um complexo médico em construção, para os lados da Avenida da Liberdade. O perfil do negócio começa a ser revelado. Uma vez promulgada a lei da IVG (sob o olhar severo mas compreensivo da igreja) todas as mulheres que queiram interromper, até às 10 semanas, a sua gravidez em condições seguras e em clínicas especializadas, podê-lo-ão fazer a baixos custos. Do seu bolso, pagam o que pagariam em qualquer hospital público. Então, a clínica factura o Estado a preços da sua tabela privada, deduz o pagamento da utente e embolsa o restante como lucro líquido. As grávidas portuguesas poderão, deste modo, evitar a incómoda viagem a Espanha (só no último ano foram 4 mil a irem a Badajoz e Mérida abortar clinicamente), evitar-se-á a intervenção do Serviço Nacional de Saúde e os lucros hospitalares retornarão às sedes espanholas das multinacionais ibéricas.
É este novo aspecto que marca a diferença entre o referendo de 1998 e aquele que em breve se irá realizar. O negócio é bom e os bispos não se revelarão certamente tão ferozes como há anos aconteceu. Calcula-se que em cada ano mais de 20 mil portuguesas, quase todas católicas, pratiquem o aborto, legal ou ilegal.
O referendo de 1998 foi, como se sabe, uma palhaçada. O governo de Guterres (Opus Dei) e o Partido Socialista (constituído por lobbies e grupos de pressão), fingiram que nada era com eles e deixaram à solta a reacção católica mais primária. A Comunicação Social deu à mentira uma generosa cobertura. A igreja, através dos famigerados grupos de «defesa da vida», aceitou baixar aos níveis mais grosseiros da viciação dos dados que, entretanto, apresentava como científicos. Ao que nos recordemos, foi nessa altura que se tornou indisfarçável o peso político determinante de que o Opus Dei dispõe no aparelho socialista. E foi deste modo que o «não» obscurantista conseguiu vencer por uma margem ridiculamente pequena, de 0,7% , e com a abstenção de 68% dos portugueses consultados.
Situações diferentes, objectivos iguais
Durante a campanha do referendo, a hierarquia católica cometeu um erro de palmatória: expôs-se demasiadamente. Por outro lado, em 1998, ainda o PS dava os primeiros passos no sentido da imposição de um socialismo moderno totalmente rendido ao neoliberalismo e à globalização capitalista. Mas havia fortes indícios de que a sua direcção caminhava no sentido da rendição total. Paralelamente, a igreja católica debatia-se também com uma difícil escolha: manter-se como religião tradicional ou transformar-se em igreja de mercado? Estas graves questões, de base comum, acabaram por aproximar o PS e o episcopado, fazendo-os convergir politicamente. O PS virou à direita e deixou de ser socialista. A igreja ajoelhou-se aos pés do capital. Só por razões de pura estratégia o PS insiste em apresentar-se como socialista e a igreja mantém o mito da opção pelos pobres.
Aguardemos que o processo se desenvolva, através da espessa nuvem da propaganda laica e religiosa. Na certeza de que as mulheres e as famílias nada de bom têm a esperar desta nova farsa. O PS tem maioria absoluta na Assembleia da República e se a sua vontade fosse realmente a despenalização da lei do IVG não precisaria de propor novo referendo. A igreja católica, tal como já é evidente, mantém-se igual a si própria: nunca põe todos os ovos num só cesto. O cardeal patriarca declarou que se abstinha. O porta-voz da conferência episcopal veio logo dizer que a igreja daria indicações de voto. Os bispos começaram a falar em coro e retomaram a linguagem de 1998. Mas o erro de então não se repetirá. Agora, a palavra de ordem pertencerá às mentes luminosas da sociedade civil : aos catedráticos católicos, aos médicos catequizados, à espiritualidade do voluntariado das IPSS, ao recatado Opus Dei, etc. O clero formará uma poderosa reserva estratégica.
Ganha corpo, entretanto, o negócio do aborto. A «lufada de ar fresco» virá de Espanha onde existem prósperas clínicas privadas que se dedicam ao ramo abortivo. Pelo menos uma delas – a Clínica dos Arcos – tem já um complexo médico em construção, para os lados da Avenida da Liberdade. O perfil do negócio começa a ser revelado. Uma vez promulgada a lei da IVG (sob o olhar severo mas compreensivo da igreja) todas as mulheres que queiram interromper, até às 10 semanas, a sua gravidez em condições seguras e em clínicas especializadas, podê-lo-ão fazer a baixos custos. Do seu bolso, pagam o que pagariam em qualquer hospital público. Então, a clínica factura o Estado a preços da sua tabela privada, deduz o pagamento da utente e embolsa o restante como lucro líquido. As grávidas portuguesas poderão, deste modo, evitar a incómoda viagem a Espanha (só no último ano foram 4 mil a irem a Badajoz e Mérida abortar clinicamente), evitar-se-á a intervenção do Serviço Nacional de Saúde e os lucros hospitalares retornarão às sedes espanholas das multinacionais ibéricas.
É este novo aspecto que marca a diferença entre o referendo de 1998 e aquele que em breve se irá realizar. O negócio é bom e os bispos não se revelarão certamente tão ferozes como há anos aconteceu. Calcula-se que em cada ano mais de 20 mil portuguesas, quase todas católicas, pratiquem o aborto, legal ou ilegal.