As vozes estridentes

Correia da Fonseca
Ouvi uma voz feminina em estridência que me pareceu de angústia e alarme e, naturalmente, fui saber o que se passava. Nada de grave: era, no televisor, uma jovem jornalista ou equiparada a fazer a reportagem de um acontecimento de importância minúscula. Censurei-me por me ter permitido o sobressalto, estou farto de saber que o tom actual das reportagens na TV, por menos relevante que seja o tema da reportagem, é aquele: o de relator desportivo que na eminência da marcação de mais um golo se deixa galvanizar pela tensão do momento (ou faz de conta que sim, porque o importante é contagiar o ouvinte com uma ansiedade tão grande quanto a que deve haver no estádio) e põe na voz intensidades e inflexões de grande «clou» dramático. Agora, na TV, também é assim. E, se me perdoam o aparente tique machista que de facto não é mais que aparência, direi que é assim sobretudo quando o repórter é uma repórter, o que aliás é regra geral ainda que com abundantes excepções. Porém não se pense que esta espécie de estilo que consiste em falar alto e em tom de alarme quando ficaria lindamente falar mais baixo e com naturalidade é alguma doença infantil do jornalismo de reportagem: Talvez de um modo menos característico, talvez nem isso, esteja presente na voz de jornalistas que em estúdio, não em reportagem externa, dão notícias. Mas é sobretudo nos exteriores que essa técnica de transporte de tensão emocional da voz de jornalistas (ou equiparadas/os) para telespectadores se tornou habitual, dir-se-ia que moda. Aparentemente, as/os jovens que reportam em tom inutilmente tenso e alto acontecimentos afinal de escassa monta estão mesmo convencidos de que assim é que deve ser, e suspeito de que pelo menos no início alguém os convenceu disso. Mas não, não é assim que deve ser, o que pode ser confirmado pela mera observação dos melhores profissionais. E contudo, por detrás deste suposto estilo, ou moda, ou lá o que é, pode estar uma motivação mais ou menos longínqua que merece reflexão.

Os melhores não falam alto

Queixamo-nos muitas vezes que os telenoticiários não são mais que deprimentes rosários de desgraças que o implacável pivot faz desfilar diante de nós, como que para nos demonstrar dia após dia que este mundo é uma desgraça sem remédio. Ora, isto não acontece porque os da televisão, seja qual for a estação emissora, nos queiram propriamente arruinar o estômago ou aniquilar a alegria de viver: acontece porque, sendo os noticiários de débil qualidade informativa (sempre a repetirem o que a imprensa já disse, sempre na obediência às mesmas linhas gerais de informação em que, quanto ao estrangeiro, como que se adivinha uma espécie de sotaque norte-americano e, quanto à realidade nacional, sempre se fica como que na casca dos acontecimentos, mesmo quando de verdadeiros acontecimentos se trata), o remédio para conferir interesse ao telenoticiário é carregar nos condimento. E os condimentos, no entendimento de quem confecciona aqueles pratos, são as desgraças, os escândalos efectivos ou supostos, por vezes as intriguinhas de corredor quando não de patamar. Daí, parece-me, que os aprendizes e aprendizas de jornalismo apliquem o tal tom de voz estridente e tendencialmente alarmante, a ver se nos despertam a atenção e a tensão emocional. Quer tudo isto dizer que as tais vozes com toques de aflição, os tais modos de relator desportivo quando o golo se aproxima, por mais moda que se tenham tornado, são na raiz uma panaceia de substituição. Estão ali em vez das reais e sólidas razões para que o telespectador esteja atento; estão ali em vez das notícias que seriam de facto emocionantes porque relacionadas com os efectivos dramas que percorrem o país actual ou com as verdadeiras razões, sempre ou quase sempre omitidas, das grandes tragédias que cobrem o mundo e de que só nos contam os terríveis mas superficiais efeitos. É por saberem isto que os grandes repórteres não falam alto mesmo quando confrontados com situações que porventura o justificariam. Eles sabem que a comoção está nos factos e nas suas raízes, não nas vozes de quem nos dá conta deles. Mas é claro que, para lá de uma reprovação comedida e de alguma ironia moderada, não é adequado desembestar em palavras agrestes contra os ou as repórteres (ou equiparados) que aplicam a voz bem alto e o tom a caminhar para o alarme. Se eles não são corrigidos por quem os poderia corrigir é porque, assim mesmo, servem bem algum objectivo. Que será talvez o de tentar criar uma emoção oca no telespectador.


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