Caridade bem ordenada...

Jorge Messias
As contas entre a Igreja e o Estado nunca foram transparentes. Isso verifica-se hoje mais do que nunca. Há uma blindagem permanente nas formas ocultas de transferência das verbas do Orçamento de Estado para áreas eclesiásticas, nomeadamente nos sectores caritativo, educativo, assistencial e patrimonial. Pagam-se subsídios estatais directos, identificados com os compromissos oficiais assumidos nas cláusulas da Concordata e na Lei da Liberdade Religiosa. Mas outros, indirectos, ocultam-se numa extensa lista de isenções e privilégios, como são exemplos o monopólio das apostas desportivas e da lotaria, a separação teórica entre as áreas lucrativas e não lucrativas das Misericórdias, ONGS e IPSS, os benefícios reconhecidos ao clero bem como aos santuários, ao turismo religioso, aos centros de dia confessionais, à acção social desenvolvida nas paróquias e dioceses, ao voluntariado, etc.
Nos estados europeus reconhece-se o direito dos cidadãos à liberdade de escolha da fé ou à sua negação e à livre adesão a uma igreja, se for essa a sua vontade. E como este compromisso implica a garantia da existência das igrejas e formas de culto, em termos materiais, cada Estado compromete-se a subsidiar (e não a pagar) de forma controlada as actividades religiosas das comunidades. As propostas e opções que vigoram na União europeia são várias mas podem arrumar-se em três grandes grupos: o Estado paga integralmente as despesas da igreja nacional; o Estado não subsidia a Igreja mas cria enquadramentos jurídicos que permitam aos fiéis leigos da sociedade civil acções lucrativas que revertam para a sua confissão religiosa; ou então, o estado laico chama a si a satisfação de todos os encargos do culto (por exemplo, o restauro ou a manutenção dos templos) e permite que os cidadãos declarem o desejo de que parte dos seus impostos anuais seja destinada a determinadas confissões religiosas. Qualquer destas alternativas pressupõe a publicação, por parte das igrejas, de contas claras e detalhadas, assim como o direito, do lado do Estado, à fiscalização das verbas atribuídas a cada confissão.
A solução encontrada em Portugal para este conjunto de problemas ignorou, contudo, todas estas alternativas. A Concordata, revista em 2004, nada alterou aos incontáveis privilégios fiscais e pecuniários reconhecidos à igreja católica pelo Estado português, em 1940. A posterior Lei da Liberdade Religiosa pegou no texto concordatária e integrou-o, linha por linha, na sua própria proposta. As relações entre a igreja católica e o Estado laico ganharam, então, uma escandalosa intimidade. Várias instituições clericais e caritativas de índole não lucrativa passaram a dar lucros fabulosos, como foi o caso da Misericórdia de Lisboa ou do Santuário de Fátima. O que não impediu que o Governo e várias autarquias locais continuassem a fazer jorrar sobre a igreja um inesgotável caudal de benefícios, subsídios e isenções.

Novo romance entre Pedro e Inês

Em Espanha, a situação real não é muito diferente da portuguesa. O Estado espanhol concede à igreja uma verba básica de cerca de 30 milhões de pesetas, permite que uma percentagem das contribuições dos cidadãos reverta a favor das confissões religiosas e subsidia os bens patrimoniais do clero e as instituições católicas de acção social. As ONGS espanholas são extremamente poderosas, organizam-se em «rede» e recebem do Estado um fortíssimo apoio financeiro (só num ano, em 1992, o governo entregou-lhes 2740 milhões de pesetas espanholas). As verbas oficiais continuaram, desde então, a crescer continuamente, calculando-se que tenham atingido, em 2001, valores superiores a 1 bilião de pesetas. Por outro lado, em Espanha, tal como em Portugal, torna-se impossível identificar os interesses eclesiásticos investidos na área financeira. Todos os principais bancos são geridos, directa ou indirectamente, pelo Opus Dei, pela imensa Companhia de Jesus ou pelos Institutos Religiosos. A extensa área social da «ajuda e desenvolvimen» foi entregue a uma superestrutura católica, a CONGDE, cujos principais instrumentos de domínio sectorial são a Cruz Vermelha, a Cáritas, a INTERMON (Institutos Religiosos), a CODESPA (Opus Dei), a Fé e Alegria, a Promoção Social da Cultura, a Mãos Unidas e a Solidariedade Social. Está em marcha todo um processo de reconversão das instituições católicas espanholas em organizações laicas identificadas com a globalização capitalista. É a este espelho que as duas igrejas ibéricas se miram e medem, preparando o futuro.
Assim se escreve o novo capítulo dos amores entre Pedro e Inês. São igrejas que não se amam mas que se desejam. Prepara-se um novo casamento, um matrimónio sagrado...


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