A bola verde-rubra

Correia da Fonseca
Para muitos de nós, o nome da cidade de Nuremberga ainda tem uma conotação com justiça que foi feita. Numa dimensão tão mais pequena que o confronto, se tentado a sério, se tornaria ridículo, a vitória da equipa portuguesa de futebol sobre o ímpeto brutal da holandesa foi também, ou aos portugueses pareceu, um acontecimento justo. Como bem terá verificado quem espreitou as ruas à hora em que a TV transmitia o jogo, havia claros sinais de que uma boa parte da população seguia o encontro decerto que com inevitável ansiedade. E é mais que provável que a ansiedade fosse crescendo, aliás com a ajuda dos telejornalistas encarregados do relato, à medida que o jogo se ia revestindo de características raras em matéria de brutezas, de simulações e de cartões de diversas cores. Pode-se gostar ou não de futebol e das transmissões dos jogos, pode-se ter sempre presente que o mundo do futebol está muito longe de ser o que devia, mas é difícil escapar à tensão suscitada pela reportagem de um acontecimento como este Portugal-Holanda. Para lá disto, há porventura uma outra razão que já aqui terá sido apontada em ocasiões anteriores: as boas prestações da selecção portuguesa de futebol, sobretudo se no centro da Europa, são importantes para milhares de nossos compatriotas emigrados, muitos dos quais talvez cansados de discriminações e sobrancerias. Não há, decerto, razão para que o futebol tenha alcançado um estatuto que lhe confere capacidade de dar prestígio ao país representado por uma equipa que vence um jogo, mas o certo é que é assim. Por isso, teria talvez qualquer coisa de crueldade e de dessolidariedade desejar que a equipa portuguesa perdesse o encontro porque boa parte da população foi induzida a pensar muito no futebol e pouco ou nada noutros aspectos da vida em que bem precisava de pensar. Quando certos poderes manipulam a opinião das gentes até este ponto, tomam as pessoas como reféns, e talvez não fosse defensável desejar que uma derrota portuguesa frente à Holanda infligisse aos reféns mais um dissabor que de resto não os curaria da maior ou menor dependência. Quanto às bandeirinhas, essa é uma outra questão mais da área do folclore e da propaganda. E também do bom-gosto e do bom-senso.

O País pouco olhado

Porém, bandeirinhas à parte, continua a ser claro que uma intensa campanha publicitária tem vindo a promover não tanto talvez a selecção nacional de futebol, a que é preciso «dar força», quanto as empresas patrocinadoras. Aí, como bem se entende, já não se trata de gosto pelo jogo bonito de ver que é o futebol nem de patriotismo, mas de negocismo. É sabido que estamos longíssimo dos tempos quase míticos em que parecia possível sonhar com o futebol como desporto; que o jogo, designadamente nas áreas profissionalizadas, se perverteu pelo seu deslize para o terreno de interesses nada desportivos e pelo excessivo apelo a paixões, e que lá está ela, a TV, na primeira linha dos agentes perversores. Raras vezes por conta própria, mais frequentemente por conta alheia, que a TV é pouco propensa a tratar de si própria sobretudo em certos aspectos que bem precisaria de cuidar. Por exemplo, a sua exemplar dignidade, a indiscutível determinação em servir o País de que afinal se serve, quer se trate da TV pública quer da TV privada. Falemos de uma virtude que vem a calhar por já ter aparecido neste texto: o patriotismo. Patriotismo e futebol? Pois sim, desde que o ardor patriótico não sirva de passaporte para o destempero e em certos momentos para a desonestidade intelectual (porque a honestidade intelectual é um mérito que bem pode aplicar-se nas pequenas coisas para que esteja «em forma» quando as grandes coisas a chamarem). Antes do futebol, porém, terá a TV de usar e invocar o patriotismo para olhar o País que não é só paisagem bonita mas também e sobretudo pessoas, entre as quais cerca de dois milhões de pobres «oficiais». Para olhar Centros de Saúde e hospitais, não as paredes mas de novo as pessoas. Para se lembrar e para nos lembrar dos velhos reformados ou à beira da reforma que agora andam a ser ameaçados com uma velhice de miséria porque, diz-se, o dinheiro vai acabar. Como facilmente se imagina, podia alongar-me numa enumeração de casos e situações a justificarem abordagens patrióticas. O futebol? Pois sim, mas não só e não em exclusivo ou em primeiríssimo lugar. Não dou novidade a ninguém; mas fica o registo da nossa lúcida consciência das coisas, não vá algum passante julgar que com a poderosa ajuda da TV nos enganam.


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