Uma pequena infecção

Correia da Fonseca
Feita a seco, sem comentários, a reportagem da RTP acerca do grupo assumidamente nazifascista suscitou observações divergentes. Houve quem reconhecesse nela a denúncia de um monstro que por aí há já largo tempo rasteja e porventura cresce sem que a generalidade das gentes dê por isso. E, por aí, tudo bem. Mas houve também quem entendesse, e não sem fundamento, que a reportagem e a repercussão por ela alcançada funcionaram como promoção publicitária de um movimento que nem a todos provocará a mesma rejeição. Até porque a ignorância é um casarão escuro de portões largos onde muitos répteis venenosos se podem acoitar, e são muitos os que ignoram pelo menos em grande parte a que infâmias e crimes estão ligados os signos que aquela rapaziada exibe com vaidade: cruzes suásticas, cruzes de ferro e outra quinquilharia a condizer. Aliás, é evidente que o senhor Mário Machado, até há dias um desconhecido, se tornou figura pública graças à reportagem, sendo agora motivo de interesse e notícias na comunicação social. Digamos que Mário Machado subiu de posto no universo mediático português, e com ele, inevitavelmente, o movimento de que se tornou o rosto. Registar este facto não significa, entenda-se, considerar que a reportagem foi uma feia acção. Nem sequer que ela devia ter sido complementada com esclarecimentos acerca do carácter não apenas ilegal mas também pior que isso de uma organização nazifascista: aquele tipo de reportagem, estritamente reduzida aos factos, é perfeitamente defensável. Mas há, naturalmente, que medir-lhe as consequências. E também que pesquisar raízes, pois é de elementar sabedoria e prudência sabermos e percebermos o que se nos vai deparando pela frente.

Aprender com a memória

É sabido que revivescências nazifascistas há muito afloram na Europa, e com alguma pujança em certos lugares, ajudadas por dois factores de primeiríssima influência no seu desenvolvimento: a crise endémica, ainda que com intensidade variável, do capitalismo, e as correntes migratórias provenientes do Norte de África (com destino a França), da Turquia e Balcãs (com destino à Alemanha), de novo de África (com destino a Espanha). E há ainda o caso um pouco específico da Grã-Bretanha e dos «cidadãos britânicos» que Sua Graciosa Majestade herdou do seu falecido império da Índia e seus arredores. É claro que alinho estas notas na condição de leigo em matéria de movimentos migratórios, mas não de excessivamente distraído quanto a uma doença cuja face agora se revelou entre nós, um tanto tosca e quase caricatural mas ainda assim a merecer atenção, graças à reportagem da RTP. E, perante ela, talvez o que mais importa seja o perguntarmo-nos a quem interessa este nazifascismo que surge um pouco com o ar de elemento de uma opereta tendencialmente violenta (é sabido que já conta pelo menos com uma ou duas mortes-de-homem no seu currículo). Interessa aos que directamente nela participam, é claro, e se sentem actores de uma estória de acções que lhes parecem épicas. Mas talvez não só a eles. Recorro à memória histórica que é património comum do nosso tempo e que nunca devia ser esquecida. E lá encontro que por detrás dos nazifascismos das décadas de 20 a 40 do século passado, os nazifascismos clássicos em que de resto os actuais se inspiram, estiveram interesses discretos de gente sem farda nem insígnias visíveis que contudo os teleguiaram. Em relação a esses movimentos sabe-se agora quem de longe os estimulou e moveu, há bibliografia sobre o assunto, embora não excessivamente divulgada por cá, por esta nossa terra não apenas de brandos costumes mas também de extensas ignorâncias. Compreender-se-á que, perante o grupo de que o senhor Mário Machado surgiu como rosto mediático, nos perguntemos se terá aparecido um pouco por geração espontânea ou se terá recebido estímulos. E, nesse caso, quais. E também para quê. Como sempre acontece perante um caso, mesmo assim minúsculo de doença infecciosa, é bom, é aconselhável, percebermos de onde vem o vírus que lhe deu origem. Essa conveniência, para não lhe chamar necessidade imperativa, é que confere um sinal de utilidade à reportagem da RTP apesar da ausência de comentários complementares que surpreendeu alguns, que chegou mesmo a suscitar suspeitas decerto injustas de cumplicidade por ausência de caracterizações. Afinal, a reportagem apontou a doença. O resto é com o País. Que tem governo e tudo.


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