O Caso Ameriquest
Uma vez mais, a rubrica «Toda a Verdade» da SIC-Notícias transmitiu uma reportagem com muito interesse, também uma vez mais acerca de práticas comerciais/financeiras havidas nos Estados Unidos da América. Como regra de que não recordo excepções, reportagens deste género são como que exclusivas dos canais distribuídos por cabo, de audiência reduzida, aparentemente para evitar que as informações neles contidas «caiam na rua». Ou talvez não, talvez esta suspeita seja injusta, consequência infeliz de longas e múltiplas aprendizagens que tornam um homem suspeitoso. O certo é que o tema da reportagem agora transmitida foi a actividade de uma importante empresa norte-americana, a Ameriquest, que se aplicou empenhadamente a, mediante «práticas financeiras fraudulentas», transferir milhões de dólares das muitas mãos que os detinham para umas poucas mãos que os cobiçavam. Nada, como se compreende, que fundamentalmente contrariasse o espírito da mais livre iniciativa e da liberdade de negócios. Infelizmente, é de crer que o sector ainda não estará completamente desregulamentado, pelo que sobreveio alguma repressão. Mas dificilmente, acrescente-se. É que, segundo a reportagem, existia uma grande intimidade entre a Ameriquest e alguns dos mais destacados contribuintes para o Partido Republicano, o que dava uma especialíssima força aos lóbis que protegiam a empresa dos olhares demasiado indiscretos da legalidade. Aliás, se a eficácia é um mérito a ter sempre em consideração, a Ameriquest merecia decerto algum respeito: ainda segundo a reportagem, havia sido a responsável pela criação de mais um milhão de pobres no breve espaço de um ano. Mesmo em terra que mantém um grande interesse por grandes marcas, por recordes, o número parece interessante, e não sei se gestores da Ameriquest não se orgulharão dele.
Ramos da mesma raiz
Afinal, um relativo pormenor incluído na reportagem teve um grande valor didáctico. Foi o caso que um dos «top-men» da Ameriquest era um senador do Partido Republicano, situação que se tornou naturalmente incómoda quando estoirou o escândalo das tais práticas fraudulentas e do milhão de novos pobres. Assim, mandava a prudência e a defesa das aparências que o talentoso senador abandonasse o Senado e procurasse outro lugar para poisar. Mas onde haveria de ser? O executivo Bush, sempre compreensivo e solidário, não terá demorado a encontrar solução: o senador foi proposto como embaixador dos Estados Unidos na Holanda. A reportagem não incluiu qualquer alusão à forma como a Holanda pode ter reagido a esta excelente ideia, talvez porque a nomeação não chegou a ser feita. Houve mesmo um outro senador, esse do Partido Democrático, que durante a avaliação da candidatura disse, implicativo, não lhe parecer bem a solução proposta: o senador partir para uma embaixada na Europa deixando atrás de si um punhado de escândalos e um milhão de lesados. Mas este aspecto do caso Ameriquest é muito útil como ilustração do respeito que a administração Bush parece ter pela dignidade das suas representações diplomáticas em países da «velha Europa». Adivinha-se porquê: porque «business is business» e quanto se lhe atravessar no caminho deve ser para arredar, por ilegítimo. É claro que a Ameriquest não é um caso exemplificativo da generalidade das empresas financeiras norte-americanas, mas só porque incorreu em excessos, porventura em leviandades, e se tornou vulnerável. Porém, a intimidade entre uma grande empresa financeira e as estruturas do poder político, que não é exactamente promiscuidade mas sim como que parentesco familiar, sendo uma e outra área ramos da mesma raiz, essa está como que no código genético do sistema. Pode mesmo alegar-se que não terá o facto grande importância, que não é caso para que se abra a boca de espanto ou de indignação, pois bem se sabe que o tecido social é feito de inevitáveis laços, por isso mesmo «tecido». E é verdade. Mas só seria uma verdade aceitável se não houvesso o tal milhão de novos pobres que com as suas vidas arruinadas terão pago muitas coisas. E também se o espírito que permitiu a Ameriquest, excessos e imprudências à parte, não fosse o espírito que anima toda uma prática já alargada ao mundo inteiro, com poder bastante para mobilizar gigantismos mediáticos para fazerem a sua promoção no espírito das gentes e para amordaçarem eventuais vozes discordantes. Que a reportagem de «Toda a verdade» tenha furado o bloqueio é notável e quase reconfortante. Resta saber quantos terão podido recolher a lição.
Ramos da mesma raiz
Afinal, um relativo pormenor incluído na reportagem teve um grande valor didáctico. Foi o caso que um dos «top-men» da Ameriquest era um senador do Partido Republicano, situação que se tornou naturalmente incómoda quando estoirou o escândalo das tais práticas fraudulentas e do milhão de novos pobres. Assim, mandava a prudência e a defesa das aparências que o talentoso senador abandonasse o Senado e procurasse outro lugar para poisar. Mas onde haveria de ser? O executivo Bush, sempre compreensivo e solidário, não terá demorado a encontrar solução: o senador foi proposto como embaixador dos Estados Unidos na Holanda. A reportagem não incluiu qualquer alusão à forma como a Holanda pode ter reagido a esta excelente ideia, talvez porque a nomeação não chegou a ser feita. Houve mesmo um outro senador, esse do Partido Democrático, que durante a avaliação da candidatura disse, implicativo, não lhe parecer bem a solução proposta: o senador partir para uma embaixada na Europa deixando atrás de si um punhado de escândalos e um milhão de lesados. Mas este aspecto do caso Ameriquest é muito útil como ilustração do respeito que a administração Bush parece ter pela dignidade das suas representações diplomáticas em países da «velha Europa». Adivinha-se porquê: porque «business is business» e quanto se lhe atravessar no caminho deve ser para arredar, por ilegítimo. É claro que a Ameriquest não é um caso exemplificativo da generalidade das empresas financeiras norte-americanas, mas só porque incorreu em excessos, porventura em leviandades, e se tornou vulnerável. Porém, a intimidade entre uma grande empresa financeira e as estruturas do poder político, que não é exactamente promiscuidade mas sim como que parentesco familiar, sendo uma e outra área ramos da mesma raiz, essa está como que no código genético do sistema. Pode mesmo alegar-se que não terá o facto grande importância, que não é caso para que se abra a boca de espanto ou de indignação, pois bem se sabe que o tecido social é feito de inevitáveis laços, por isso mesmo «tecido». E é verdade. Mas só seria uma verdade aceitável se não houvesso o tal milhão de novos pobres que com as suas vidas arruinadas terão pago muitas coisas. E também se o espírito que permitiu a Ameriquest, excessos e imprudências à parte, não fosse o espírito que anima toda uma prática já alargada ao mundo inteiro, com poder bastante para mobilizar gigantismos mediáticos para fazerem a sua promoção no espírito das gentes e para amordaçarem eventuais vozes discordantes. Que a reportagem de «Toda a verdade» tenha furado o bloqueio é notável e quase reconfortante. Resta saber quantos terão podido recolher a lição.