O método católico da condução automóvel

Jorge Messias
A Igreja tem grandes ambições e, assim sendo, confronta-se inevitavelmente com o problema dos tempos mortos que surgem entre as etapas do seu projecto global. É por isso que o episcopado português e o opulento Opus Dei (ambos inseparáveis) recorrem frequentemente ao método do pára-arranca, expressão tão vulgarmente usada na gíria da condução automóvel. A cada avanço sucede-se uma travagem. O objectivo é ir ganhando tempo que permita acertar detalhes importantes com outras forças igualmente interessadas no modelo de sociedade a que a hierarquia procura dar corpo. Os novos estatutos do Santuário de Fátima avançaram um passo na reforma do território eclesiástico mas no resto da caminhada muito ficou ainda por fazer. Falta reagrupar ou suprimir paróquias, extinguir ou fundir Misericórdias e IPSS, apagar a imagem do pároco residente e substituí-la pela figura da equipa móvel sempre disponível, modernizar o ensino católico, reconverter em moldes neoliberais - ou esmagar - as alas canónicas mais conservadoras, invadir e ocupar as áreas laicas do ensino, informatizar a 100% as telecomunicações da igreja, entregar ao poder directo do Papa e do Opus Dei a nova província eclesiástica que se projecta para o Norte e Centro do país, etc., etc.
Aparentemente, tudo isto parece marcar passo. Mas é muito provável que esteja próxima a hora das grandes decisões. O projecto está bem vivo, ainda que se notem resistências na fila e sejam demasiados os veículos em circulação. É preciso, pois, ganhar algum tempo para limpar as estradas.

Ver e calar é perder e ganhar

A hierarquia religiosa olha contemplativamente o galopante desabar dos valores da nossa vida colectiva. Sabe que a chave do sucesso da igreja neoliberal passa por fechar os olhos aos crimes do poder. Os lucros estão à vista. A situação impõe, portanto, que se respeite uma cumplicidade estratégica. O governo laico de Sócrates desmonta o aparelho produtivo, liberaliza os despedimentos, aumenta preços e impostos, agrava o desequilíbrio na distribuição da riqueza e, numa palavra, conduz o país para à pobreza económica e social. À primeira vista, pode parecer que as tomadas de posição do Governo são obra de tresloucados liberais. Mas não é tanto assim. Sócrates limita-se a recuar, criando espaços vazios que são imediatamente ocupados por instituições privadas, laicas ou confessionais. São novos conteúdos que exigem o estreitamento de alianças entre o poder político, o poder económico e o poder religioso representado, em Portugal, pela igreja católica. Os resultados deste exercício são fabulosos. Traduzem-se não apenas na acumulação dos bens materiais mas, sobretudo, na construção de uma nova sociedade capitalista onde os ricos continuem a saquear os pobres e estes vivam na ilusão de um mundo de sucesso e de auto-estima. É por esta razão que a presença da igreja se impõe aos grandes financeiros. Só a religião poderá distrair as massas e iludi-las, ao branquear a completa falta de escrúpulos dos políticos e dos banqueiros da globalização.
A margem de risco destas manobras conjuntas da igreja e do cifrão é por enquanto muito limitada. Reduz-se, na realidade, à possível consciencialização, entre os católicos, das contradições que opõem as políticas do Vaticano e a prática da doutrina cristã. O que, de momento, parece improvável. Mas a revolta social entre os crentes é uma questão de tempo. Dentro ou fora da igreja, a exploração do homem pelo homem conduz, inevitavelmente, à luta de classes. O povo católico não é um povo aparte, é simplesmente um povo. Constituem-no homens e mulheres que, na sua esmagadora maioria, acabarão por perceber que estão a ser enganados pelas chefias. Quando tal acontecer, os bispos ficarão nus no meio do deserto.
Recentemente, numa crónica de Frei Bento Domingues publicada no jornal Público, veio à tona de água a dúvida atroz que atravessa o inconsciente de milhões de católicos, em todo o mundo. O padre dominicano falava de Fátima e dizia: «Pela distância que existe em Portugal entre o número dos muito ricos e os pobres, não me surpreende que se pense em preparar uma Fátima chique para gente sofisticada». Depois, citando o falecido bispo do Porto, Bento Domingues lembrava: «Para o povo a religião, no geral, não significa nada de transcendente. Seria ridículo ver Fátima dos peregrinos como um conjunto de empresas comerciais ... A religião que parece destapar o céu mas, na terra, levanta muros de separação, é uma mentira !»
Palavras honestas que revelam uma grande coragem por parte de quem as proferiu. Uma vela acesa na noite tenebrosa desta igreja católica dos pactos secretos e dos grandes negócios carimbados com a cruz.


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