Duas notícias
Sérgio Godinho cantou que a vida é feita de pequenas coisas. Plagiando-o um pouco, direi que a subsistente vantagem de ver televisão também é, muitas vezes, feita de coisas pequenas, já que quanto às grandes coisas bem sabemos que, infelizmente, não se tem vindo por muito bom caminho. Assim, ainda um dia destes estava a acompanhar uma dessas rubricas arrumadas na «2:» e em que ninguém repara, «Falar Direito», onde os temas tratados são matéria jurídica ou desenvolvidos em torno dela, quando deparei com um relativo pormenor que não apenas me impressionou como me pareceu significativo e didáctico. Falava-se da eventual regulamentação legal da prostituição, com a consequente aplicação de carga fiscal sobre os rendimentos das «profissionais», e depunha o Dr. António Ferreira Ramos. Disse ele a dado passo, para exemplificar como em certos países a prostituição está a ser encarada oficialmente como uma profissão, que na Alemanha uma trabalhadora desempregada se viu despojada do subsídio de desemprego que recebe por ter recusado aceitar o lugar de prostituta proposto pelo instituto que por lá trata da concessão dessas coisas. É certo que eu já encontrara a mesma informação estampada em letra de forma nas páginas de um jornal diário de referência, mas confesso que não acreditara, que achara que aquilo era um exagero fabricado em intenção da imprensa de escândalos, que uma coisa daquelas era impensável num país de tão sólidas tradições culturais, éticas civilizacionais. Afinal, porém, era verdade; pois não creio que o Dr. Ferreira Ramos tivesse ido debitar para ali aquele aparente desvario só por o ter lido num jornal, até porque se trata de um jurista que creio especializado também na questão do enquadramento jurídico da prostituição. Porém, ainda que a boa-fé do Dr. Ferreira Ramos na sua qualidade de leitor tenha sido abusada pelo diário, o facto de um homem com as suas condições ter aceite a notícia como fundamentada não deixa de ser muito significativo. Não apenas dos padrões éticos em que se apoia a Alemanha actual, unificada e tudo, mas também das linhas com que se cose actualmente o sistema social alemão de protecção dos trabalhadores contra o desemprego.
Uma área de negócio
Inevitavelmente, esta informação trouxe à memória uma outra notícia, essa há semanas veiculada por diversos media, que anunciava a instalação na Alemanha, durante o próximo Mundial de Futebol, de cerca de 30 mil prostitutas vindas de diversos lugares do mundo mas sobretudo do Leste Europeu numa operação de importação temporária verdadeiramente inédita e singular. Segundo então se leu e ouviu, para essas mulheres haverá instalações especialmente construídas, embora de carácter temporário, e mesmo uma vasta área especialmente reservada para a sua actividade. Neste caso, não se trata tanto de considerar a prostituição uma actividade profissional intermutável com a de escriturária, operária fabril ou balconista, como de considerá-la como uma área de negócios merecedora de protecção oficial ou oficiosa talvez enlevada. Depois de sabermos isto, estranhar-se-á muito menos, se é que ainda se estranha, que o tráfico de mulheres seja uma das actividades mais lucrativas do comércio internacional, ombreando com o negócio de armas e o tráfico de droga. E não parece necessário, para que se encare tudo isto com repugnância e horror, que recorramos a valores éticos que outros podem taxar de preconceituosos nestes curiosos tempos em que o escrúpulo moral é frequentemente apodado de «complexo»: parece averiguado que o exercício da prostituição não faz bem à saúde. Que sobre ela se edifique oficial ou oficiosamente um edifício burocrático com cobrança de impostos, na circunstância directamente relacionável com um evento que é designado como desportivo, é sem dúvida significativo. E precisamente porque é significativo, não será excessivo dizer que estas duas notícias consubstanciam informação, e informação importante. Não tanto ou não apenas a acerca da Alemanha actual, pois o país é um elo de um sistema económico-social que domina enorme parte do planeta e que entre um e outro lugar só diferirá em aspectos de relativo pormenor. Em verdade, as duas notícias, e muitas mais que decerto se lhes poderia juntar depois de alguma pesquisa, dão impressionante testemunho do carácter inumano do capitalismo transnacional nesta sua pujante fase de ultraliberalismo que se sente vitorioso e impune. Parece haver quem acredite que este sistema de uma avidez insaciável e bestial também pode ser virtuoso. Há quem acredite nas mais desvairadas coisas. Mas saibamos que mesmo entre os que dizem acreditar nem todos estão de boa-fé.
Uma área de negócio
Inevitavelmente, esta informação trouxe à memória uma outra notícia, essa há semanas veiculada por diversos media, que anunciava a instalação na Alemanha, durante o próximo Mundial de Futebol, de cerca de 30 mil prostitutas vindas de diversos lugares do mundo mas sobretudo do Leste Europeu numa operação de importação temporária verdadeiramente inédita e singular. Segundo então se leu e ouviu, para essas mulheres haverá instalações especialmente construídas, embora de carácter temporário, e mesmo uma vasta área especialmente reservada para a sua actividade. Neste caso, não se trata tanto de considerar a prostituição uma actividade profissional intermutável com a de escriturária, operária fabril ou balconista, como de considerá-la como uma área de negócios merecedora de protecção oficial ou oficiosa talvez enlevada. Depois de sabermos isto, estranhar-se-á muito menos, se é que ainda se estranha, que o tráfico de mulheres seja uma das actividades mais lucrativas do comércio internacional, ombreando com o negócio de armas e o tráfico de droga. E não parece necessário, para que se encare tudo isto com repugnância e horror, que recorramos a valores éticos que outros podem taxar de preconceituosos nestes curiosos tempos em que o escrúpulo moral é frequentemente apodado de «complexo»: parece averiguado que o exercício da prostituição não faz bem à saúde. Que sobre ela se edifique oficial ou oficiosamente um edifício burocrático com cobrança de impostos, na circunstância directamente relacionável com um evento que é designado como desportivo, é sem dúvida significativo. E precisamente porque é significativo, não será excessivo dizer que estas duas notícias consubstanciam informação, e informação importante. Não tanto ou não apenas a acerca da Alemanha actual, pois o país é um elo de um sistema económico-social que domina enorme parte do planeta e que entre um e outro lugar só diferirá em aspectos de relativo pormenor. Em verdade, as duas notícias, e muitas mais que decerto se lhes poderia juntar depois de alguma pesquisa, dão impressionante testemunho do carácter inumano do capitalismo transnacional nesta sua pujante fase de ultraliberalismo que se sente vitorioso e impune. Parece haver quem acredite que este sistema de uma avidez insaciável e bestial também pode ser virtuoso. Há quem acredite nas mais desvairadas coisas. Mas saibamos que mesmo entre os que dizem acreditar nem todos estão de boa-fé.