Sócrates e o «Compromisso com a Ciência»
A intervenção do primeiro-ministro no último debate mensal na Assembleia da República, na qual Sócrates enunciou «sete novas medidas para um compromisso com a Ciência», é digna de registo e de comentário sob vários pontos de vista.
Os meses que leva de governação, aclararam desde cedo aos olhos dos portugueses qual o sentido dos «compromissos» de Sócrates. É pois com avisada prudência que nos devemos deter sobre as suas palavras.
Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, este coelho que o ilusionista Sócrates tenta tirar da cartola é mais do que o mero anúncio de mais uns quantos milhões de euros para a ciência – um pouco ao jeito de outros que no passado foram feitos (recorde-se a este respeito o Conselho de Ministros que decorreu em Óbidos em Janeiro de 2004, no qual Durão Barroso anunciou «o maior investimento de sempre em ciência alguma vez feito em Portugal» – ...descubra as diferenças...).
Tal anúncio, mereceria uma reacção do género «que bom que é, só esperamos agora que se concretize», ou não estivesse já o gato escaldado e bem escaldado... Mas a intervenção do PM – bem como as respostas que deu (e as que não deu!) no debate que se lhe seguiu – se analisada com cuidado, revela sérios motivos de preocupação, e de crítica. Senão vejamos:
O governo propõe-se atribuir durante este ano e o próximo, nada mais nada menos que 7450 bolsas de investigação. Destas, 2450 destinam-se à formação avançada de recursos humanos, ou seja, a financiar doutoramentos e pós-doutoramentos. As restantes 5000 foram baptizadas de «bolsas de integração na investigação» e chamadas de «novo tipo de bolsas». A táctica é conhecida e também aqui tem aplicação: embrulha-se em papel novo o que velho e estafado é! O ««novo tipo de bolsas»« de que Sócrates nos fala já existe desde pelo menos meados da década de 90. Chamam-se «bolsas de iniciação à investigação» ou simplesmente ««bolsas de investigação»« e têm sido utilizadas no sistema científico e tecnológico nacional essencialmente com duas finalidades: para tudo e para mais alguma coisa. É com recurso a bolsas deste «novo tipo»» que se tem vindo, progressivamente, a substituir por bolseiros o pessoal de quadro necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições de investigação e desenvolvimento (I&D).
Se alguma coisa aqui é nova, não é o ««tipo»« de bolsas mas o seu número. De facto, a concretizar-se o anúncio, em menos de dois anos, o número de trabalhadores científicos em situação precária nas Universidades e Laboratórios do Estado nacionais – que deveriam ser contratados como técnicos ou investigadores e integrados nas respectivas carreiras – poderia praticamente duplicar.
Quanto às restantes bolsas, as 2450 destinadas a formação avançada, parte serão bolsas de mestrado e doutoramento e outra parte serão bolsas de pós-doutoramento. Se as primeiras se justificam pela necessidade que temos de recuperar o atraso muito significativo que temos neste domínio, face aos países com os quais habitualmente estabelecemos comparações (UE-25), já as bolsas de pós-doutoramento, na maioria dos casos, não encontram outra justificação para a sua existência que não a manutenção de investigadores qualificados (já com vários anos de ««formação» e com outros tantos de provas dadas sobre a qualidade do seu trabalho científico) em situação precária, mesmo de autêntica exploração.
Mas é importante ter em conta que ao esforço – a montante – de formação avançada da nossa população, se terá que associar – a jusante – um outro, de intensidade correspondente, de aproveitamento dos recursos formados. Tal, consegue-se com a formulação de políticas de emprego científico consequentes, que façam resultar do investimento feito um benefício para o país. O conhecimento novo criado deve ser integrado nas mais diversas esferas da actividade económica e social – em especial da actividade produtiva. De outra forma, o investimento feito resultará, em grande medida, em desperdício para o país. Desperdício que outros saberão aproveitar, encaminhando para outras paragens alguns dos nossos melhores «cérebros» – ou simplesmente inconformados e desempregados.
E que nos diz Sócrates (o tal dos 150 mil empregos) quanto à criação de emprego científico? Pois bem, Sócrates diz-nos que irá «viabilizar a contratação pelas instituições científicas públicas de 500 novos investigadores doutorados até ao final de 2007».
Um rato da cartola
Bom, desta vez não se pode dizer que tenha sido um coelho que Sócrates tirou da cartola. Terá sido, quando muito, um ratinho (tal dever-se-á muito possivelmente ao apego do ilusionista a estas coisas da ciência, já que como é sabido esse pequeno mamífero se trata de um modelo experimental muito utilizado…).
Vejamos alguns números elucidativos:
- De acordo com os dados mais recentes (Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional 2003, OCES ), Portugal, tendo em conta a sua população activa, apresenta face à média da UE um défice de 10 000 investigadores.
- Relativamente ao número de técnicos e outro pessoal afecto a actividades de investigação, este défice é ainda maior. Em Portugal existe um técnico por cada 3,8 investigadores. Na UE-25, o rácio baixa para um técnico por cada 1,3 investigadores .
São números que ilustram bem o quanto estes 500 novos investigadores não são mais do que um pequeno pequeníssimo passo na recuperação do nosso enorme atraso. Partindo do princípio, pouco realista, que a média da UE se manteria tal qual está, ou seja, que só Portugal aumentaria o número dos seus investigadores, estes 500 novos investigadores permitiriam recuperar 5% do nosso atraso, à luz desse só indicador. Pequeno passo, pois que ainda assim se restringe apenas aos investigadores, não contemplando o necessário aumento do número de técnicos e outro pessoal afecto a actividades de I&D, o que terá por consequência o acentuar da distorção acima referida.
O anúncio agora feito fica muitíssimo aquém daquilo que seria necessário mas também muito aquém daquilo que seria já hoje possível assegurar, se tivermos em conta os milhares de jovens investigadores portugueses que se doutoraram nos últimos anos, em Portugal e no estrangeiro.
A desproporção entre o número de empregos a criar e o número de bolsas a atribuir salta à vista (500 para 7450) e será suficiente, no mínimo, para inquietar todos aqueles que apesar de tudo insistem em querer fazer destas coisas da ciência profissão e perspectiva de futuro.
Outra questão a merecer atenção é saber de que tipo de emprego se fala quando se anuncia a «criação de condições» para a contratação destes «500 novos investigadores». Este pormenor, possivelmente incómodo, teve Sócrates o cuidado de o omitir na sua intervenção. Mas quando perguntado, logo tratou de deixar claro clarinho, não fossem restar dúvidas: «tratam-se de contratos individuais de trabalho, a termo». Sem perspectivas de estabilidade (pode sempre dizer Sócrates que quem chegou a investigador doutorado, nos tempos que correm, já teve mais que tempo para se habituar…) e sem perspectivas de desenvolvimento de carreira – totalmente ao arrepio portanto das mais recentes recomendações internacionais a este respeito, que apontam para «carreiras de investigação mais sustentáveis e de maior interesse para os investigadores» e para «perspectivas de carreira melhores» – antes perfeitamente em linha com a precarização em marcha em todos os sectores da função pública.
O processo de avaliação
dos Laboratórios do Estado
Ainda relativamente ao emprego científico, nem uma nota, por exemplo, sobre a renovação dos envelhecidos e depauperados quadros de pessoal dos Laboratórios do Estado.
A justificação poderá ser a de que está ainda a decorrer o processo de avaliação destas instituições. Admitamos que sim, que a isso se deve o facto de nem uma, umazinha que fosse, das «sete medidas» que compõem o compromisso de Sócrates se destinar à necessária revitalização destas instituições. A verdade é que também a este respeito, não faltam motivos de preocupação…
Está efectivamente a decorrer um processo de avaliação, conduzido por uma comissão externa de avaliação dos Laboratórios do Estado. Não há – tanto quanto se saiba até ao momento – conclusões desse processo (que deveria estar concluído supostamente até ao passado dia 31 de Março). Está a decorrer... Mas o PM, ao mesmo tempo que garante que «tiraremos todas as conclusões do processo de avaliação internacional das instituições científicas», sempre vai adiantando que atacará sem tréguas «a proliferação excessiva de estruturas», apontando desde já para a redução em 25% do número de centros. A divulgação recente das primeiras conclusões do PRACE apontam para a extinção de um Laboratório do Estado, a Direcção Geral de Protecção de Culturas. Então, em que ficamos? Esperamos ou não pelas conclusões da comissão de avaliação? Convém recordar, que quando se iniciou este processo de avaliação se admitiam todos os cenários, desde a extinção à criação de novas instituições; agora Sócrates já só se fala em redução... Terá o primeiro-ministro um sentido premonitório face às conclusões do trabalho da comissão? Ou está simplesmente a querer dizer que diga ela o que disser, o governo já sabe o que vai fazer?
Tal anúncio, mereceria uma reacção do género «que bom que é, só esperamos agora que se concretize», ou não estivesse já o gato escaldado e bem escaldado... Mas a intervenção do PM – bem como as respostas que deu (e as que não deu!) no debate que se lhe seguiu – se analisada com cuidado, revela sérios motivos de preocupação, e de crítica. Senão vejamos:
O governo propõe-se atribuir durante este ano e o próximo, nada mais nada menos que 7450 bolsas de investigação. Destas, 2450 destinam-se à formação avançada de recursos humanos, ou seja, a financiar doutoramentos e pós-doutoramentos. As restantes 5000 foram baptizadas de «bolsas de integração na investigação» e chamadas de «novo tipo de bolsas». A táctica é conhecida e também aqui tem aplicação: embrulha-se em papel novo o que velho e estafado é! O ««novo tipo de bolsas»« de que Sócrates nos fala já existe desde pelo menos meados da década de 90. Chamam-se «bolsas de iniciação à investigação» ou simplesmente ««bolsas de investigação»« e têm sido utilizadas no sistema científico e tecnológico nacional essencialmente com duas finalidades: para tudo e para mais alguma coisa. É com recurso a bolsas deste «novo tipo»» que se tem vindo, progressivamente, a substituir por bolseiros o pessoal de quadro necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições de investigação e desenvolvimento (I&D).
Se alguma coisa aqui é nova, não é o ««tipo»« de bolsas mas o seu número. De facto, a concretizar-se o anúncio, em menos de dois anos, o número de trabalhadores científicos em situação precária nas Universidades e Laboratórios do Estado nacionais – que deveriam ser contratados como técnicos ou investigadores e integrados nas respectivas carreiras – poderia praticamente duplicar.
Quanto às restantes bolsas, as 2450 destinadas a formação avançada, parte serão bolsas de mestrado e doutoramento e outra parte serão bolsas de pós-doutoramento. Se as primeiras se justificam pela necessidade que temos de recuperar o atraso muito significativo que temos neste domínio, face aos países com os quais habitualmente estabelecemos comparações (UE-25), já as bolsas de pós-doutoramento, na maioria dos casos, não encontram outra justificação para a sua existência que não a manutenção de investigadores qualificados (já com vários anos de ««formação» e com outros tantos de provas dadas sobre a qualidade do seu trabalho científico) em situação precária, mesmo de autêntica exploração.
Mas é importante ter em conta que ao esforço – a montante – de formação avançada da nossa população, se terá que associar – a jusante – um outro, de intensidade correspondente, de aproveitamento dos recursos formados. Tal, consegue-se com a formulação de políticas de emprego científico consequentes, que façam resultar do investimento feito um benefício para o país. O conhecimento novo criado deve ser integrado nas mais diversas esferas da actividade económica e social – em especial da actividade produtiva. De outra forma, o investimento feito resultará, em grande medida, em desperdício para o país. Desperdício que outros saberão aproveitar, encaminhando para outras paragens alguns dos nossos melhores «cérebros» – ou simplesmente inconformados e desempregados.
E que nos diz Sócrates (o tal dos 150 mil empregos) quanto à criação de emprego científico? Pois bem, Sócrates diz-nos que irá «viabilizar a contratação pelas instituições científicas públicas de 500 novos investigadores doutorados até ao final de 2007».
Um rato da cartola
Bom, desta vez não se pode dizer que tenha sido um coelho que Sócrates tirou da cartola. Terá sido, quando muito, um ratinho (tal dever-se-á muito possivelmente ao apego do ilusionista a estas coisas da ciência, já que como é sabido esse pequeno mamífero se trata de um modelo experimental muito utilizado…).
Vejamos alguns números elucidativos:
- De acordo com os dados mais recentes (Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional 2003, OCES ), Portugal, tendo em conta a sua população activa, apresenta face à média da UE um défice de 10 000 investigadores.
- Relativamente ao número de técnicos e outro pessoal afecto a actividades de investigação, este défice é ainda maior. Em Portugal existe um técnico por cada 3,8 investigadores. Na UE-25, o rácio baixa para um técnico por cada 1,3 investigadores .
São números que ilustram bem o quanto estes 500 novos investigadores não são mais do que um pequeno pequeníssimo passo na recuperação do nosso enorme atraso. Partindo do princípio, pouco realista, que a média da UE se manteria tal qual está, ou seja, que só Portugal aumentaria o número dos seus investigadores, estes 500 novos investigadores permitiriam recuperar 5% do nosso atraso, à luz desse só indicador. Pequeno passo, pois que ainda assim se restringe apenas aos investigadores, não contemplando o necessário aumento do número de técnicos e outro pessoal afecto a actividades de I&D, o que terá por consequência o acentuar da distorção acima referida.
O anúncio agora feito fica muitíssimo aquém daquilo que seria necessário mas também muito aquém daquilo que seria já hoje possível assegurar, se tivermos em conta os milhares de jovens investigadores portugueses que se doutoraram nos últimos anos, em Portugal e no estrangeiro.
A desproporção entre o número de empregos a criar e o número de bolsas a atribuir salta à vista (500 para 7450) e será suficiente, no mínimo, para inquietar todos aqueles que apesar de tudo insistem em querer fazer destas coisas da ciência profissão e perspectiva de futuro.
Outra questão a merecer atenção é saber de que tipo de emprego se fala quando se anuncia a «criação de condições» para a contratação destes «500 novos investigadores». Este pormenor, possivelmente incómodo, teve Sócrates o cuidado de o omitir na sua intervenção. Mas quando perguntado, logo tratou de deixar claro clarinho, não fossem restar dúvidas: «tratam-se de contratos individuais de trabalho, a termo». Sem perspectivas de estabilidade (pode sempre dizer Sócrates que quem chegou a investigador doutorado, nos tempos que correm, já teve mais que tempo para se habituar…) e sem perspectivas de desenvolvimento de carreira – totalmente ao arrepio portanto das mais recentes recomendações internacionais a este respeito, que apontam para «carreiras de investigação mais sustentáveis e de maior interesse para os investigadores» e para «perspectivas de carreira melhores» – antes perfeitamente em linha com a precarização em marcha em todos os sectores da função pública.
O processo de avaliação
dos Laboratórios do Estado
Ainda relativamente ao emprego científico, nem uma nota, por exemplo, sobre a renovação dos envelhecidos e depauperados quadros de pessoal dos Laboratórios do Estado.
A justificação poderá ser a de que está ainda a decorrer o processo de avaliação destas instituições. Admitamos que sim, que a isso se deve o facto de nem uma, umazinha que fosse, das «sete medidas» que compõem o compromisso de Sócrates se destinar à necessária revitalização destas instituições. A verdade é que também a este respeito, não faltam motivos de preocupação…
Está efectivamente a decorrer um processo de avaliação, conduzido por uma comissão externa de avaliação dos Laboratórios do Estado. Não há – tanto quanto se saiba até ao momento – conclusões desse processo (que deveria estar concluído supostamente até ao passado dia 31 de Março). Está a decorrer... Mas o PM, ao mesmo tempo que garante que «tiraremos todas as conclusões do processo de avaliação internacional das instituições científicas», sempre vai adiantando que atacará sem tréguas «a proliferação excessiva de estruturas», apontando desde já para a redução em 25% do número de centros. A divulgação recente das primeiras conclusões do PRACE apontam para a extinção de um Laboratório do Estado, a Direcção Geral de Protecção de Culturas. Então, em que ficamos? Esperamos ou não pelas conclusões da comissão de avaliação? Convém recordar, que quando se iniciou este processo de avaliação se admitiam todos os cenários, desde a extinção à criação de novas instituições; agora Sócrates já só se fala em redução... Terá o primeiro-ministro um sentido premonitório face às conclusões do trabalho da comissão? Ou está simplesmente a querer dizer que diga ela o que disser, o governo já sabe o que vai fazer?