Um tenente médico da RAF confrontou o Conselho de Guerra

A ocupação do Iraque é ilegal

Manoel de Lencastre
A criminosa participação britânica na guerra do Iraque, já em tantas ocasiões condenada pelo povo em mega manifestações realizadas em Londres e em quase todas as cidades do país, continua a provocar ondas de choque no seio da sociedade, a retirar prestígio às forças armadas, a colocar nas ruas da amargura o nome da Grã-Bretanha no mundo. A 104.ª vítima mortal sustentada pelo contingente britânico na zona de Bassora foi anunciada há dias. Trata-se do tenente Richard Palmer, dos ‘Royal Scots Dragoon Guards’. O tenente Palmer tinha sido treinado e diplomado na Academia Militar de Sandhurst, Camberley, de onde costuma sair a fina flor da oficialidade deste país.
Quase simultaneamente, o julgamento de um tenente-médico da aviação (RAF) num Conselho de Guerra reunido em Aldershot, chocava, profundamente, a opinião pública. O tenente Malcolm Kendall-Smith, mobilizado para o Iraque, recusou essa comissão de serviço, frontalmente, e assumiu a posição honrosa mas cheia de perigos de considerar ilegal, injusta, inaceitável, a invasão daquele país por parte das nações imperialistas, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, principalmente. Por isso, recusou-se a partir. Agora, aos 27 anos de idade, acaba de ser expulso das forças armadas e de ser condenado a uma pena de oito meses de prisão que já começou a cumprir na penitenciária militar de Colchester. Neste momento, as autoridades prisionais britânicas estão a desmilitarizá-lo, se é que esta expressão pode compreender-se, e a conduzir o detido através de um tortuoso processo de exames médicos, tudo para deixar a impressão junto da opinião pública britânica, europeia e mundial de que ele possa, possivelmente, não estar em boas condições de saúde mental. Terminado este ciclo de humilhações, o Dr. Kendall-Smith será transferido para uma penitenciária civil onde, no centro do universo de lunáticos que é o sistema prisional inglês, completará a pena a que foi condenado.
«Não vou para o Iraque, seja em que circunstâncias for», dissera aos oficiais da RAF na altura da mobilização para incorporar a ‘Operação Telic’, em Bassora. Recusava, assim, uma ordem militar directa mas colocava-se, automaticamente, na órbita das autoridades e da severa e draconiana justiça militar.

Cinco acusações
O julgamento foi a farsa que seria de esperar de um Conselho de Guerra reunido em posição tão crítica perante a hostilidade da opinião pública.
«Pare de fazer declarações para a galeria!», gritou-lhe o juiz, Jack Bayliss, quando o réu iniciava a sua defesa e se limitava a declarar, cândida e tranquilamente, que recebera uma ordem ilegal. Por isso, não poderia cumpri-la. Disse, ainda, que, segundo a montanha de livros e outros elementos de informação que tinha consigo, a guerra no Iraque era um incompreensível gesto do governo britânico praticado à revelia dos ‘Princípios de Nuremberga’, das leis internacionais e das decisões das Nações Unidas. Ao ouvir estas alegações, o juiz militar esclareceu logo que a discussão da legalidade da guerra não era permitida no Conselho de Guerra. E estabeleceu: «O réu não está autorizado a explicar-nos aquilo que pensa das leis em vigor». O tenente médico argumentou: «Mas, se não posso dizer o que penso das leis segundo as quais estou a ser julgado, como poderei defender-me? O que sei é que o uso das forças armadas de um Estado contra a soberania e a integridade de outro Estado não passa de um acto de agressão». O juiz perdeu a serenidade. «Cale-se! Não lhe permito o uso de diatribes no campo das leis internacionais! E não admito que um réu discuta comigo no meu próprio tribunal!»
As acusações contra Kendall-Smith, apresentadas ao Conselho de Guerra pelo advogado de acusação em nome da Coroa, David Perry, eram cinco, a saber:
• não cumpriu as ordens recebidas para serviço de treino com pistola e espingarda;
• não se apresentou a uma sessão de medidas à cabeça para que lhe fosse distribuído um capacete;
• não compareceu a uma sessão de informações de ordem médica;
• não compareceu à sessão em que as instruções de serviço no Iraque lhe seriam comunicadas;
• não se apresentou em Bassora em substituição de um colega cuja comissão de serviço terminara.

Gangsters de Washington pertencem à escola das SS

O tenente médico Malcolm Kendall-Smith, já tinha cumprido comissões de serviço no Kuwait, no Qatar, e no Afeganistão. Não lhe faltam conhecimentos, portanto, quanto às operações militares do imperialismo no seu e nosso tempo. Já viu o novo colonialismo em acção. A apropriação de recursos de vários países. O aparecimento nos cenários de guerra do Afeganistão e do Iraque de meios bélicos absolutamente desproporcionados. Sabe perfeitamente que, ao contrário do que Blair e Bush proclamam, o povo afegão, cuja experiência socialista foi, logo à nascença, afogada em sangue pelo imperialismo e pelos grupos de assassinos e terroristas recrutados por Londres e Washington para servi-lo, não é a democracia parlamentar que deseja. É pão, é a saída da miséria, é a modernização autêntica que sirva as necessidades das populações. A democracia parlamentar, na versão conhecida no Ocidente, só produz palavreado. Quem está a ver um parlamento a funcionar em Kabul? Ou em Bagdad? O corajoso tenente inglês sabe que a democracia na boca de Bush e Blair não passa de uma expressão maligna destinada a iludir os menos preparados. Por isso, na segunda sessão do seu julgamento, não hesitou em dizer ao Conselho de Guerra aquilo que pensa dos americanos.
Eis as suas corajosas palavras: «Deixar-me transportar para o Iraque, seria envolver-me numa posição de responsabilidade criminal. Tenho provas documentais de que os métodos e as práticas dos americanos no Médio Oriente e na zona do Golfo são comparáveis às dos nazis. Praticam-se, crimes de guerra, sistematicamente, naquelas regiões. Há uma equivalência moral entre os Estados Unidos e a Alemanha nazi!» Surpreendido com a franqueza desta declaração, o advogado de acusação, David Perry, interveio, perguntando: «O quê? Está a dizer que existe uma igualdade de valores entre o Terceiro Reich e os Estados Unidos?» O militar rebelde que demonstrou não ter medo do Conselho de Guerra, respondeu: «Correcto!». O advogado de defesa, Philip Sapsford, diria: «As declarações sinceras do meu constituinte são as de alguém que possui uma enorme coragem moral!»

Voz do passado

Do romance ‘A Rua da Felicidade’ publicado em 2001 pela Editorial Escritor. Autor: Alberto da Silva:

«Era em ladrilho vermelho o chão do extenso corredor conduzindo ao gabinete do comandante. À porta, perfilava-se um soldado de serviço. Usava gravata. Botas reluzentes. Bem penteado. Mandaram entrar o soldado Julião. Numa sala, retratos de Salazar e Craveiro Lopes. Sobre uma pequena mesa, exemplares da Revista do Exército e do Diário da Manhã. Abriu-se uma porta interior e de um gabinete surgiram dois oficiais. Um deles apresentou-se logo: “Sou o capitão Figueiredo, do Governo Militar de Lisboa. Este meu colega é do Estado-Maior. Não percamos tempo”. O interrogatório, então, começou.
«Soldado Julião! Temos informações de várias origens segundo as quais tens afirmado que te recusarás a servir na Índia se para lá fores mobilizado. É isto, verdade ou mentira?»
«É verdade, meu capitão!» O oficial não se mostrou surpreendido. Mas sorriu.
«Se te tomarmos a sério serás preso e julgado em Conselho de Guerra. Mas, o que me parece plausível é que sejas mobilizado, imediatamente, e metido num avião para Goa. Que tal te parece?» Voltou a sorrir. O colega lia o jornal. Parecia longe de tudo aquilo.
«O meu capitão desculpe mas a minha objecção é de carácter político», disse Julião.
«Não estou a ver para que vos serve um soldado que não acredita no vosso governo nem na nossa presença colonial em Goa». O capitão Figueiredo, não podendo conter-se, ia agarrar numa cadeira quando o outro oficial interveio: «Oh, Figueiredo, oh, Figueiredo, tenha calma. Arruma-se já o homem. Faz-se a mobilização e pronto! Em quarenta e oito horas está lá».
«Mas é que andamos a defender aquilo que é nosso. Aquilo que, bem vistas as coisas, também é dele. Agora, na Índia, amanhã em Angola e em Moç…». Ia a dizer Moçambique quando o soldado o interrompeu:
«A minha parte, nosso capitão, cedo-lha desde já!».


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