A madrugada
Este ano, a participação da RTP nas celebrações de Abril revestiu-se de uma singularidade muito significativa: concentrou-se na própria madrugada do dia 25, digamos que ainda no prolongamento, desta vez mais extenso do que é habitual, da emissão da véspera. Na verdade, entre a uma e tal da noite e as seis horas da madrugada a RTP 1 transmitiu ininterruptamente programas que tinham tudo a ver com a revolução, embora nem sempre especificamente com a data. Foi a gravação do último espectáculo de José Afonso, já muito doente, no Coliseu; foi um documentário tecido com depoimentos acerca do significado do 25 de Abril segundo diversos entendimentos; foi a repetição de um programa com algumas das chamadas canções de Abril; foi ainda um outro programa com depoimentos sobre Abril; foi a reportagem de um conjunto de visitas feitas por jovens a certos lugares ligados à revolução e à ditadura brutal a que o 25 de Abril pôs cobro. Aqui, as visitas contaram com os esclarecimentos do dr. Mário Soares, o que terá sido óptimo e muito conveniente na altura em que o programa foi feito. Por aqui se vê que os telespectadores que se tenham mantido acordados ao longo daquelas cinco horas da madrugada da passada terça-feira mergulharam longamente, graças aos bons serviços da RTP, no que talvez possa designar-se por espírito comemorativo do 25 de Abril. É certo que ao longo daquelas cinco horas, números redondos, muita coisa, e coisa importante, terá sido omitida, mas bem se sabe que a RTP não pode lembrar-se de tudo. Até pode sustentar-se, já agora, que à RTP assiste o direito de não querer lembrar-se de tudo. Nesta linha, lembro-me de que, por sinal antes de Abril, o dr. Ramiro Valadão, presidente da RTP durante o período marcelista do fascismo português, disse um dia, para responder aos rumores que acusavam a empresa de não ser isenta e exercer censura, que «a RTP tem o direito de ter opinião». Quem acompanha a programação da actual RTP percebe com escassa margem para dúvidas que a RTP continua a exercer esse direito. Quanto a isso, estamos na mesma. Ainda que, naturalmente, com inteiro respeito pelos valores da democracia, ora essa.
Serviços mínimos
Temos, pois, que pelos vistos é a madrugada a melhor altura para comemorar o 25 de Abril na sábia opinião, tacitamente afirmada, da actual RTP. Perguntarão os incrédulos se tudo se resumiu a essa longa emissão expressamente dedicada aos eventuais insones, e a resposta é que não senhores, é que ao longo do próprio dia 25 houve outras coisas na programação da RTP. Mas pouca coisa. Houve, por estrita obrigação, a transmissão da sessão comemorativa na Assembleia da República durante a manhã (e, aí, o grande motivo de interesse seria, segundo alguma imprensa, saber se o PR levaria ou não um cravo na lapela, ele, que agitara um cravo vermelho e cantara o «Grândola» durante a campanha eleitoral). Houve, ao fim da tarde, ainda na «1», um programinha breve e escassamente relevante sobre a data. E houve as referências obrigatórias integradas nos noticiários, pouco mais. Já que em domingos ou feriados é de rotina a transmissão de um filme, escolheu-se um filme sobre o 25 de Abril, filme necessariamente já muito visto e por isso pouco atraente para enorme parte do telepúblico. Na «2:», foi a mesma timidez, a mesma falta de entusiasmo pela data. Compreende-se, o entusiasmo possível e desejável esgotara-se com o empenhamento havido na madrugada, pouco sobrara excepto o remanescente sentido do dever a cumprir, mas com uma espécie de serviços mínimos.
Contudo, terá havido quem, com razão ou sem ela, tenha sentido como uma quase provocação que o grande bloco comemorativo de Abril tenha sido colocado na RTP 1 ao longo da madrugada, isto é, para uma audiência praticamente nula. Ou quem, num outro ângulo de entendimento ou de tentativa dele, tenha atribuído essa singular decisão a uma espécie de acto falhado correspondente ao secreto (mas talvez não exageradamente secreto) desejo da actual RTP de apagar a memória de Abril. Sobretudo a memória de Abril tal como ele foi; pois em verdade o 25 de Abril não começou na madrugada do dia que se tornou feriado consagrado à Liberdade mas sim muito antes, muitos anos antes. Para o contar não bastaria decerto a ciceronização do dr. Mário Soares, tal como a terão visto os que porventura assistiram ao programa da madrugada de terça-feira. Mas, como se percebe, a RTP continua a reservar-se o «direito de ter opinião». Como Valadão já reivindicava.
Serviços mínimos
Temos, pois, que pelos vistos é a madrugada a melhor altura para comemorar o 25 de Abril na sábia opinião, tacitamente afirmada, da actual RTP. Perguntarão os incrédulos se tudo se resumiu a essa longa emissão expressamente dedicada aos eventuais insones, e a resposta é que não senhores, é que ao longo do próprio dia 25 houve outras coisas na programação da RTP. Mas pouca coisa. Houve, por estrita obrigação, a transmissão da sessão comemorativa na Assembleia da República durante a manhã (e, aí, o grande motivo de interesse seria, segundo alguma imprensa, saber se o PR levaria ou não um cravo na lapela, ele, que agitara um cravo vermelho e cantara o «Grândola» durante a campanha eleitoral). Houve, ao fim da tarde, ainda na «1», um programinha breve e escassamente relevante sobre a data. E houve as referências obrigatórias integradas nos noticiários, pouco mais. Já que em domingos ou feriados é de rotina a transmissão de um filme, escolheu-se um filme sobre o 25 de Abril, filme necessariamente já muito visto e por isso pouco atraente para enorme parte do telepúblico. Na «2:», foi a mesma timidez, a mesma falta de entusiasmo pela data. Compreende-se, o entusiasmo possível e desejável esgotara-se com o empenhamento havido na madrugada, pouco sobrara excepto o remanescente sentido do dever a cumprir, mas com uma espécie de serviços mínimos.
Contudo, terá havido quem, com razão ou sem ela, tenha sentido como uma quase provocação que o grande bloco comemorativo de Abril tenha sido colocado na RTP 1 ao longo da madrugada, isto é, para uma audiência praticamente nula. Ou quem, num outro ângulo de entendimento ou de tentativa dele, tenha atribuído essa singular decisão a uma espécie de acto falhado correspondente ao secreto (mas talvez não exageradamente secreto) desejo da actual RTP de apagar a memória de Abril. Sobretudo a memória de Abril tal como ele foi; pois em verdade o 25 de Abril não começou na madrugada do dia que se tornou feriado consagrado à Liberdade mas sim muito antes, muitos anos antes. Para o contar não bastaria decerto a ciceronização do dr. Mário Soares, tal como a terão visto os que porventura assistiram ao programa da madrugada de terça-feira. Mas, como se percebe, a RTP continua a reservar-se o «direito de ter opinião». Como Valadão já reivindicava.