Aquilino, frase & lobos
A estreia na RTP1 da adaptação à TV do romance «Quando os Lobos Uivam», de Aquilino, é sem dúvida motivo para aplauso. É claro que a presença na televisão portuguesa da ficção de um dos maiores escritores do século XX, e não apenas pelos seus méritos como prosador, surge tarde e não salda ma dívida antiga: olho para trás e só encontro, creio que nos idos da segunda metade da década de 70, a adaptação de um conto, «O Homem que matou o Diabo», feita ainda a preto-e-branco, protagonizada por um Herman José a dar prova de que também podia ser um bom actor no registo sério. Para mais, «Quando os Lobos Uivam» destaca-se na obra de Aquilino pelo facto de ser o livro onde o seu sentido de cidadania se exprime com maior indignação implícita e mais claramente íntegra o autor no movimento de rejeição da ditadura fascista que em maior ou menor grau foi partilhado por todos os escritores portugueses. Tudo, pois, factores de aplauso para esta estreia. Quanto à qualidade da adaptação, aliás difícil, é cedo para formular avaliações definitivas, mas é possível sublinhar o que, sendo importante, não parece provável que os episódios posteriores desmintam: a excelência da generalidade das interpretações, o tom justo da reconstituição de ambientes e lugares. Neste episódio inicial pareceu que à narração faltava fluência, de algum modo avançando por saltos, surgindo como que sincopada, porventura em consequência da preocupação de compatibilizar a inclusão dos passos mais importantes da estória com a limitação do número de episódios. Nada, de qualquer modo, que possa constituir pecado mortal se as virtudes já identificadas se confirmarem, o que parece altamente provável. O maior risco, ainda assim talvez remoto, seria que a falta de fluidez narrativa pudesse prejudicar a receptividade dos telespectadores a um trabalho que bem a merece, mas é de crer que isso não venha a acontecer.
Uma pena
O pior, porém, é que a série começou mal, e nem sequer levou muito tempo a fazê-lo, foi logo na primeira imagem. É que a primeira imagem trazia-nos uma legenda, uma legenda que era uma citação, a citação de uma frase atribuída ao dr. António de Oliveira Salazar, que a teria proferido no decurso de uma conversa com um jornalista estrangeiro de visita ao nosso País. Era assim: «Comece o seu inquérito por Aquilino. É um inimigo do regime. Dir-lhe-á mal de mim, mas não importa: é um grande escritor.» Assim deu a RTP ao País uma implícita indicação do «fair play», mesmo democraticidade, do dr. Salazar. Mas não contou o resto. Não contou que na sequência da publicação de «Quando os Lobos Uivam» foi Aquilino Ribeiro processado, arrastado perante o tribunal. Não contou que na sequência desse processo foi publicado no Brasil, por iniciativa do advogado de Aquilino, dr. Heliodoro Caldeira, e com prefácio de Adolfo Casais Monteiro, um opúsculo intitulado «Quando os Lobos Julgam / a Justiça Uiva» que incluía o libelo de acusação formulado contra o escritor e a defesa apresentada. Quer dizer: embora talvez para apresentar ao telespectador um testemunho insuspeito em favor da qualidade literária de Aquilino (testemunho que aliás não era necessário), a série mentiu por omissão e sugeriu uma virtude do ditador que ele não tinha, branqueando-lhe o carácter rancoroso e vingativo. O menos que se pode dizer é que foi uma pena. E não se alegue que a mesmíssima frase figurava, como de facto figurou, ao alto da «orelha» do livro na sua edição de 1958, pelo que se justificaria a sua citação em 2006. É que, como bem se entende, em 58 a editora tinha todo o empenho em tentar apaziguar o ditador e o seu aparelho repressivo, o que aliás de nada valeu: «Quando os Lobos Uivam» foi rapidamente apreendido pela PIDE. Essa conveniência não se coloca hoje, salvo se porventura se queira agradar ao magote de gente que sonha com a tarefa, incompatível com a honestidade elementar, de limpar dos seus crimes de diversos graus o ditador e o regime. Não me parece que tenha sido esse o objectivo de Francisco Moita Flores, responsável pelo argumento e diálogos desta adaptação, ou de João Cayate, realizador. Nem por isso, contudo, a inserção daquela frase, na verdade desligada de todo o seu contexto, que era monstruoso, deixa de ter sido uma feia acção. Repito a palavra mínima: deixa de ter sido uma pena.
Uma pena
O pior, porém, é que a série começou mal, e nem sequer levou muito tempo a fazê-lo, foi logo na primeira imagem. É que a primeira imagem trazia-nos uma legenda, uma legenda que era uma citação, a citação de uma frase atribuída ao dr. António de Oliveira Salazar, que a teria proferido no decurso de uma conversa com um jornalista estrangeiro de visita ao nosso País. Era assim: «Comece o seu inquérito por Aquilino. É um inimigo do regime. Dir-lhe-á mal de mim, mas não importa: é um grande escritor.» Assim deu a RTP ao País uma implícita indicação do «fair play», mesmo democraticidade, do dr. Salazar. Mas não contou o resto. Não contou que na sequência da publicação de «Quando os Lobos Uivam» foi Aquilino Ribeiro processado, arrastado perante o tribunal. Não contou que na sequência desse processo foi publicado no Brasil, por iniciativa do advogado de Aquilino, dr. Heliodoro Caldeira, e com prefácio de Adolfo Casais Monteiro, um opúsculo intitulado «Quando os Lobos Julgam / a Justiça Uiva» que incluía o libelo de acusação formulado contra o escritor e a defesa apresentada. Quer dizer: embora talvez para apresentar ao telespectador um testemunho insuspeito em favor da qualidade literária de Aquilino (testemunho que aliás não era necessário), a série mentiu por omissão e sugeriu uma virtude do ditador que ele não tinha, branqueando-lhe o carácter rancoroso e vingativo. O menos que se pode dizer é que foi uma pena. E não se alegue que a mesmíssima frase figurava, como de facto figurou, ao alto da «orelha» do livro na sua edição de 1958, pelo que se justificaria a sua citação em 2006. É que, como bem se entende, em 58 a editora tinha todo o empenho em tentar apaziguar o ditador e o seu aparelho repressivo, o que aliás de nada valeu: «Quando os Lobos Uivam» foi rapidamente apreendido pela PIDE. Essa conveniência não se coloca hoje, salvo se porventura se queira agradar ao magote de gente que sonha com a tarefa, incompatível com a honestidade elementar, de limpar dos seus crimes de diversos graus o ditador e o regime. Não me parece que tenha sido esse o objectivo de Francisco Moita Flores, responsável pelo argumento e diálogos desta adaptação, ou de João Cayate, realizador. Nem por isso, contudo, a inserção daquela frase, na verdade desligada de todo o seu contexto, que era monstruoso, deixa de ter sido uma feia acção. Repito a palavra mínima: deixa de ter sido uma pena.