nasceu e cresceu nas tipografias clandestinas
A menina dos olhos
«A primeira coisa que vi quando abri os olhos foram letras», conta Mariana Morais. Filha dos tipógrafos clandestinos Joaquim e Catarina Rafael, viveu os primeiros anos da sua vida com os pais numa casa isolada, perto de Coina, onde funcionava uma tipografia clandestina. A casa não tinha condições para um parto e Mariana foi nascer a Almada, na casa de Gabriel Pedro, também ele militante comunista.
Aos dois anos e meio, deu-se a separação. «Comecei a falar muito cedo e sempre fui muito faladora», lembra Mariana, contando a história da separação dos pais. «Via o meu pai a trabalhar, a fazer as palavras, a compor os jornais com aqueles caracteres inventados pelo Gutenberg, com a letrinha no topo. Perguntei-lhe o que era aquilo e ele respondeu-me que eram “pregos”. Um dia fui à rua com a minha mãe e disse a uma vizinha que tinha ido às compras com a minha mãe e que o meu pai tinha ficado em casa a fazer “pregos”». A criança começava a pôr em causa a defesa da casa clandestina e foi viver para Vale de Vargo, com a avó materna e os tios.
Os anos passados longe dos pais foram marcantes para Mariana Morais. «Quando fui para a escola já conhecia as letras de imprensa. Não me lembrava que as tinha aprendido, mas lembrava-me dos “pregos”», recorda. O saber adquirido pela criança não se limitou à escola, que frequentou por escassos seis meses: Vale de Vargo era uma terra de trabalho e eram frequentes as lutas dos operários agrícolas e a pequena Mariana aprendeu, mesmo sem o saber, o que era a exploração e o fascismo.
Aos sete anos, regressou para junto dos pais, então a viver no Norte. «Eles disseram-me tudo. Já não me chamava Mariana, mas sim “Maria” e mostraram-me as razões da luta», lembra. «Eu tinha visto os camponeses a passar fome e, ouvindo os meus pais, tudo aquilo me fez sentido.»
Das ideias fazer palavras
No final da década de 50, Joaquim Rafael muda-se com a família para os arredores de Lisboa, para uma casa onde funcionava uma tipografia clandestina. Foi então que a pequena Mariana, com apenas nove anos, se iniciou na composição manual da imprensa do Partido. «Foi uma coisa de que gostei muito», recorda. «Pegávamos nas letras, com elas fazíamos as palavras e imprimíamos os textos que os camaradas redactores escreviam.»
A composição dos textos era uma tarefa meticulosa e demorada e Mariana lembra-se de passar horas a fio com os pais a compor, com um cobertor enrolado à cintura para minorar o frio. Mas, recorda com um sorriso, que «era giro fazer as palavras e as notícias e ver aquilo tudo impresso. Quando havia gravuras, então, era uma maravilha». Tantos anos passados, Mariana ainda recorda a posição dos caracteres nas caixas do tipo: «Do lado direito eram as letras e do outro os espaços; o quadrado maior era o do “a”… O meu pai trouxe tudo em bruto e depois fez as caixas, para dividir os caracteres. E aquilo era muito giro para uma criança.»
Do trabalho nas tipografias, Mariana Morais guarda muitas recordações, embora tenha deixado essa tarefa com apenas treze anos de idade. «Até tenho saudades do cheiro da tinta e do chumbo», afirma. O mesmo chumbo, altamente tóxico, que acabaria por vitimar o seu pai, falecido pouco depois do 25 de Abril. Do pai, preserva a memória de um homem exigente com o seu trabalho: «Aquilo tinha que sair perfeito e às vezes ficávamos noites inteiras a vê-lo montar e desmontar o rolo, para que não ficassem manchas no papel.» Já no fim da sua vida, depois de lhe ter sido diagnosticada a doença que o vitimaria, Joaquim Rafael trabalhou incansavelmente na impressão de 150 mil manifestos para as grandes lutas ocorridas, já nos anos setenta, no Norte do País. «Tossia dia e noite, era uma coisa pavorosa. Mas fê-lo satisfeito, pois havia um grande amor àquilo que estava a fazer.»
Para Mariana Morais, a imprensa clandestina era a «menina dos olhos» do Partido e um dos principais alvos da repressão. E, também para quem lá trabalhava, essa importância fazia-se sentir: «Participávamos numa coisa concreta, que se via. As ideias eram transformadas em palavras, e estas em jornais e manifestos que eram levados às pessoas e que depois tinham uma realização prática nas lutas do nosso povo. E nós éramos actores disso.»
O papel de uma vida
Mas a vida clandestina não era fácil e a jovem Mariana Morais cedo percebeu isso. «Era difícil não lidar com os outros miúdos e não ir à escola. Ainda por cima, sociável como sou…» Em tantos anos de vida na clandestinidade, só por uma vez uma criança entrou na sua casa, num aniversário. E apenas aconteceu para não levantar suspeitas entre os vizinhos.
Mariana recorda que mesmo quando brincava sentia «aquela tensão de estar a defender a casa». As outras crianças e os vizinhos, afirma, «não me conheciam a mim, mas à personagem que eu representava». Apesar de ser «muito faladora», nunca pôs a família e o Partido em risco. «Não estava nada descontraída e falava aparentemente de forma aberta, mas nunca respondia a nada que não pudesse», lembra Mariana. Em sua opinião, limitava-se a fazer como os actores: «assumia uma personagem e levava-a até ao fim».
Hoje, Mariana reconhece que viver a fingir desde os sete anos de idade lhe poderia ter criado problemas psicológicos. Mas, destaca, as «crianças têm mecanismos que nós, em adultos, já não temos e são capazes de coisas extraordinárias». Uma vez, com a polícia a rondar, mãe e filha tiveram que sair de casa à pressa. Do pai nada sabiam e esperavam um camarada que as levaria para um local seguro. Mas este atrasou-se e ficaram as duas na rua, à espera. Quando os polícias se aproximaram delas, Mariana, então com sete anos, começou a falar com os agentes sobre a sua boneca e distraiu-os. «Eu fazia aquilo automaticamente, de forma instintiva. A minha mãe nunca me tinha dito para fazer nada daquilo, mas os miúdos percebem as coisas.»
Aos dezassete anos, Mariana separou-se novamente dos pais. Um ano depois, mergulhava por sua conta na clandestinidade, com o seu companheiro, Armando Morais. Com dois filhos nascidos na clandestinidade, viu aproximar-se o dia da separação.«Felizmente, veio o 25 de Abril.»
Aquilo que mais temia era que a polícia usasse os seus filhos como pressão, caso fosse presa, e pensava naquilo que faria. «Muitas vezes de noite pensava que, no dia em que tivesse dúvidas acerca desta resposta, teria que colocar isto ao Partido, pois era a minha obrigação. Mas nunca cheguei a essa altura, e não sei se alguma vez chegaria…»
Recentemente, Mariana Morais concluiu o curso de Ciências da Comunicação, com 14 valores. Até aos 42 anos nem a quarta classe tinha. «Sempre gostei de jornais», confessa com um sorriso.
Os anos passados longe dos pais foram marcantes para Mariana Morais. «Quando fui para a escola já conhecia as letras de imprensa. Não me lembrava que as tinha aprendido, mas lembrava-me dos “pregos”», recorda. O saber adquirido pela criança não se limitou à escola, que frequentou por escassos seis meses: Vale de Vargo era uma terra de trabalho e eram frequentes as lutas dos operários agrícolas e a pequena Mariana aprendeu, mesmo sem o saber, o que era a exploração e o fascismo.
Aos sete anos, regressou para junto dos pais, então a viver no Norte. «Eles disseram-me tudo. Já não me chamava Mariana, mas sim “Maria” e mostraram-me as razões da luta», lembra. «Eu tinha visto os camponeses a passar fome e, ouvindo os meus pais, tudo aquilo me fez sentido.»
Das ideias fazer palavras
No final da década de 50, Joaquim Rafael muda-se com a família para os arredores de Lisboa, para uma casa onde funcionava uma tipografia clandestina. Foi então que a pequena Mariana, com apenas nove anos, se iniciou na composição manual da imprensa do Partido. «Foi uma coisa de que gostei muito», recorda. «Pegávamos nas letras, com elas fazíamos as palavras e imprimíamos os textos que os camaradas redactores escreviam.»
A composição dos textos era uma tarefa meticulosa e demorada e Mariana lembra-se de passar horas a fio com os pais a compor, com um cobertor enrolado à cintura para minorar o frio. Mas, recorda com um sorriso, que «era giro fazer as palavras e as notícias e ver aquilo tudo impresso. Quando havia gravuras, então, era uma maravilha». Tantos anos passados, Mariana ainda recorda a posição dos caracteres nas caixas do tipo: «Do lado direito eram as letras e do outro os espaços; o quadrado maior era o do “a”… O meu pai trouxe tudo em bruto e depois fez as caixas, para dividir os caracteres. E aquilo era muito giro para uma criança.»
Do trabalho nas tipografias, Mariana Morais guarda muitas recordações, embora tenha deixado essa tarefa com apenas treze anos de idade. «Até tenho saudades do cheiro da tinta e do chumbo», afirma. O mesmo chumbo, altamente tóxico, que acabaria por vitimar o seu pai, falecido pouco depois do 25 de Abril. Do pai, preserva a memória de um homem exigente com o seu trabalho: «Aquilo tinha que sair perfeito e às vezes ficávamos noites inteiras a vê-lo montar e desmontar o rolo, para que não ficassem manchas no papel.» Já no fim da sua vida, depois de lhe ter sido diagnosticada a doença que o vitimaria, Joaquim Rafael trabalhou incansavelmente na impressão de 150 mil manifestos para as grandes lutas ocorridas, já nos anos setenta, no Norte do País. «Tossia dia e noite, era uma coisa pavorosa. Mas fê-lo satisfeito, pois havia um grande amor àquilo que estava a fazer.»
Para Mariana Morais, a imprensa clandestina era a «menina dos olhos» do Partido e um dos principais alvos da repressão. E, também para quem lá trabalhava, essa importância fazia-se sentir: «Participávamos numa coisa concreta, que se via. As ideias eram transformadas em palavras, e estas em jornais e manifestos que eram levados às pessoas e que depois tinham uma realização prática nas lutas do nosso povo. E nós éramos actores disso.»
O papel de uma vida
Mas a vida clandestina não era fácil e a jovem Mariana Morais cedo percebeu isso. «Era difícil não lidar com os outros miúdos e não ir à escola. Ainda por cima, sociável como sou…» Em tantos anos de vida na clandestinidade, só por uma vez uma criança entrou na sua casa, num aniversário. E apenas aconteceu para não levantar suspeitas entre os vizinhos.
Mariana recorda que mesmo quando brincava sentia «aquela tensão de estar a defender a casa». As outras crianças e os vizinhos, afirma, «não me conheciam a mim, mas à personagem que eu representava». Apesar de ser «muito faladora», nunca pôs a família e o Partido em risco. «Não estava nada descontraída e falava aparentemente de forma aberta, mas nunca respondia a nada que não pudesse», lembra Mariana. Em sua opinião, limitava-se a fazer como os actores: «assumia uma personagem e levava-a até ao fim».
Hoje, Mariana reconhece que viver a fingir desde os sete anos de idade lhe poderia ter criado problemas psicológicos. Mas, destaca, as «crianças têm mecanismos que nós, em adultos, já não temos e são capazes de coisas extraordinárias». Uma vez, com a polícia a rondar, mãe e filha tiveram que sair de casa à pressa. Do pai nada sabiam e esperavam um camarada que as levaria para um local seguro. Mas este atrasou-se e ficaram as duas na rua, à espera. Quando os polícias se aproximaram delas, Mariana, então com sete anos, começou a falar com os agentes sobre a sua boneca e distraiu-os. «Eu fazia aquilo automaticamente, de forma instintiva. A minha mãe nunca me tinha dito para fazer nada daquilo, mas os miúdos percebem as coisas.»
Aos dezassete anos, Mariana separou-se novamente dos pais. Um ano depois, mergulhava por sua conta na clandestinidade, com o seu companheiro, Armando Morais. Com dois filhos nascidos na clandestinidade, viu aproximar-se o dia da separação.«Felizmente, veio o 25 de Abril.»
Aquilo que mais temia era que a polícia usasse os seus filhos como pressão, caso fosse presa, e pensava naquilo que faria. «Muitas vezes de noite pensava que, no dia em que tivesse dúvidas acerca desta resposta, teria que colocar isto ao Partido, pois era a minha obrigação. Mas nunca cheguei a essa altura, e não sei se alguma vez chegaria…»
Recentemente, Mariana Morais concluiu o curso de Ciências da Comunicação, com 14 valores. Até aos 42 anos nem a quarta classe tinha. «Sempre gostei de jornais», confessa com um sorriso.