Professor, TV e jovens
No passado domingo, num momento das suas «Escolhas», Marcelo Rebelo de Sousa mostrou-se surpreendido e preocupado com o elevado número de horas em que a televisão ocupa os olhos, e obviamente que também a cabeça, das crianças portuguesas. Por muito que se saiba que o professor tem mais em que pensar, pareceu-me surpreendente a sua surpresa: não é de hoje nem de ontem que pais e educadores se mostram preocupados com essa questão, embora me pareçam ainda insuficientes o número e a veemência das suas intervenções acerca do assunto. De qualquer modo, as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa poderiam ter alguma utilidade se alguém se dispusesse a tomá-las como ponto de partida para, pelo menos, uma reflexão alargada e minimamente fecunda no plano das consequências. Disse Marcelo, entre outras coisas, que o fascínio dos jovens telespectadores pelas estórias que lhes são contadas pela TV provoca o que chamou de «descolagem da realidade», tendo mesmo tido a aparente audácia de falar em «alienação», palavra que sempre implica o risco de suscitar conotações com o marxismo e/ou qualquer outro pensamento subversivo. Mas, como sempre seria inevitável, faltou ao professor dizer muita coisa mais, e de resto ele próprio o saberá muito bem. Sem esquecer a exiguidade daquele breve tempo de antena, bem se pode dizer que não fez mais que soprar levemente o espesso véu de silêncios que cobre o velho tema das relações entre a TV e os jovens; véu apenas ligeiramente afastado muito de longe em longe, porventura para que não se suspeite de que é uma espécie de pano de ferro para evitar a propagação de incêndios como se usava nos velhos teatros. Como Marcelo Rebelo de Sousa referiu, e referindo denunciou, o convívio dos jovens portugueses com a TV é, em média, maior que o seu convívio com a família e com a escola. Isto significa provavelmente que é a TV quem mais os educa e deseduca, nem sequer valendo a escapatória de alegar que ainda mais convivem com outros jovens. Pois, já se vê, também estes terão sido «ensinados» pela mesma mestra.
Uma censura «new wave»
A expressão «descolagem da realidade», que curiosamente o professor também usou num outro contexto naquela mesma noite, é uma espécie de eufemismo para designar um corte com o real de significado grave sobretudo quando imposto ou induzido do exterior. No fundo, corresponde a uma forma moderna de efectiva censura, pois a tal realidade que ficou descolada é substituída por um real falsificado, mentiroso, impeditivo da percepção de vazio que de outro modo iria ocorrer. Também a censura aos media já não tem a forma velha e bruta geralmente simbolizada pelo «lápis azul». Essa permitia que se desse pela ausência da informação suprimida, mesmo que fosse proibido manter o espaço em branco que o corte ocasionara. Agora, todos os espaços que poderiam ser ocupados por informações indesejadas são preenchidos por assuntos, de preferência apetitosos, que não colidam com os «valores» instalados, antes os corroborem e reforcem. É esse o cenário mediático que nos envolve, tão aparentemente «natural» que nem damos por ele. E é nele que se inclui a televisão que «educa» a generalidade dos jovens portugueses, conquistados pela oferta de gulodices mediáticas condizentes com o seu apetite.
Dir-se-á talvez que desta situação escapam os garotos mais novos, porventura mais tocados pelos telefilmes de animação, japoneses ou de outra origem, que por acepipes género «Morangos com Açúcar». Mas não é bem assim. A verdade é que a suposta «programação para as crianças» é quase uma ficção, por muito que pareça existir, porque as condições concretas em que a televisão é vista nas casas portuguesas são impossibilitantes de «teleplateias estanques» no interior de cada família, isto é, de que se impeça os mais novos de saciarem a sua curiosidade pelo que os menos novos vêem. Por isso o crescimento do seu corpo vai a par com o crescimento do fascínio pelo mundo falsificado, esterilizado, amputado de dados fundamentais, em que decorre a generalidade das novelas, sobretudo as que não inocentemente se proclamam juvenis. Não, não são casos de censura pura e simples: é antes censura impura e de composição complexa. Falar dela e sobretudo dos seus eventuais efeitos, entre os quais avulta a ignorância do real e o desprezo por ele (pois sempre o ignorante tende a desprezar o que pressente mas ignora) é abordar apenas um dos efeitos efectivamente assustadores das sobredoses de TV com que os garotos e jovens portugueses diariamente se «injectam». Que Marcelo Rebelo de Sousa se tenha referido ao problema, ainda que global e sumariamente, só lhe ficou bem. Que um dia o abordasse longamente, com a lucidez de que pode dispor e sem preconceitos político-ideológicos, ainda lhe ficaria melhor.
Uma censura «new wave»
A expressão «descolagem da realidade», que curiosamente o professor também usou num outro contexto naquela mesma noite, é uma espécie de eufemismo para designar um corte com o real de significado grave sobretudo quando imposto ou induzido do exterior. No fundo, corresponde a uma forma moderna de efectiva censura, pois a tal realidade que ficou descolada é substituída por um real falsificado, mentiroso, impeditivo da percepção de vazio que de outro modo iria ocorrer. Também a censura aos media já não tem a forma velha e bruta geralmente simbolizada pelo «lápis azul». Essa permitia que se desse pela ausência da informação suprimida, mesmo que fosse proibido manter o espaço em branco que o corte ocasionara. Agora, todos os espaços que poderiam ser ocupados por informações indesejadas são preenchidos por assuntos, de preferência apetitosos, que não colidam com os «valores» instalados, antes os corroborem e reforcem. É esse o cenário mediático que nos envolve, tão aparentemente «natural» que nem damos por ele. E é nele que se inclui a televisão que «educa» a generalidade dos jovens portugueses, conquistados pela oferta de gulodices mediáticas condizentes com o seu apetite.
Dir-se-á talvez que desta situação escapam os garotos mais novos, porventura mais tocados pelos telefilmes de animação, japoneses ou de outra origem, que por acepipes género «Morangos com Açúcar». Mas não é bem assim. A verdade é que a suposta «programação para as crianças» é quase uma ficção, por muito que pareça existir, porque as condições concretas em que a televisão é vista nas casas portuguesas são impossibilitantes de «teleplateias estanques» no interior de cada família, isto é, de que se impeça os mais novos de saciarem a sua curiosidade pelo que os menos novos vêem. Por isso o crescimento do seu corpo vai a par com o crescimento do fascínio pelo mundo falsificado, esterilizado, amputado de dados fundamentais, em que decorre a generalidade das novelas, sobretudo as que não inocentemente se proclamam juvenis. Não, não são casos de censura pura e simples: é antes censura impura e de composição complexa. Falar dela e sobretudo dos seus eventuais efeitos, entre os quais avulta a ignorância do real e o desprezo por ele (pois sempre o ignorante tende a desprezar o que pressente mas ignora) é abordar apenas um dos efeitos efectivamente assustadores das sobredoses de TV com que os garotos e jovens portugueses diariamente se «injectam». Que Marcelo Rebelo de Sousa se tenha referido ao problema, ainda que global e sumariamente, só lhe ficou bem. Que um dia o abordasse longamente, com a lucidez de que pode dispor e sem preconceitos político-ideológicos, ainda lhe ficaria melhor.