Ser ou não ser notícia

Correia da Fonseca
Desta vez, depois de perscrutar o horizonte da «2:» e nela não avistar nada que me parecesse acolhedor, procurei refúgio na RTP Memória. É uma decisão não direi que desesperada, mas sem dúvida perigosa: naquele lugar de indiscriminada amálgama, é sempre possível deparar com velhas imagens de Salazar, o «velho abutre» do não suficientemente conhecido poema de Sophia, e nessa eventualidade lá se fica com o refúgio envenenado para o resto do serão, pelo menos. Mas tive sorte: estava a ser retransmitido um programa quase recente, coisa para um ou dois anos, e em estúdio, numa conversa conduzida por António Louçã (não há engano, escrevi António!), estavam os jornalistas Fernando Paulouro e Daniel Reis. Fiquei, naturalmente: não é todos os dias que se encontra a RTP a dar largo tempo de antena a jornalistas competentes, inteligentes e solidários. Para mais, o assunto por eles abordado era a vida dos mineiros da Panasqueira antes e depois de Abril. Trata-se de uma realidade terrivelmente exemplar da condição dos trabalhadores durante a ditadura fascista, e também na actualidade, com a contra-revolução legislativa já velhinha de vários anos e o poder do grande empresariado de novo em plena força sem que ninguém lhe tolhe as decisões mesmo quando tendencialmente assassinas. Sem que aqui seja possível relatar tudo quanto Daniel Reis e Fernando Paulouro contaram acerca dos tempos anteriores a 74, é forçoso registar que então, estando a generalidade dos mineiros condenados à morte em consequência da silicose, eram ainda assim obrigados a voltar às minas, isto é, a ir ao encontro do fim anunciado, pois de outro modo as famílias passariam fome, ou talvez se devesse dizer que passariam ainda mais fome. O depoimento de Daniel Reis foi particularmente pungente, pois o seu próprio pai, mineiro, morreu com a silicose contraída na mina. Quanto a Fernando Paulouro, que acompanhou todos esses anos de tragédias e lutas na qualidade de jornalista, pôde narrar, além do mais, o quanto custava nesses anos fazer jornalismo nesse bastião de coragem e honestidade que era então, como continua a ser, o «Jornal do Fundão». E foi ele que, a propósito da cortina de silêncio que a censura formal então interpunha entre a realidade e a população, referiu um «ensinamento» atribuído ao próprio ditador: «o que não é notícia não existe». Impressiona reflectir em como esta maquiavélica regra é plenamente aplicável ao fluxo informativo dos grande media actuais.

Saudade do que não houve

Entretanto, tive de voltar, por dever de ofício, aos telenoticiários do dia e, designadamente, às breves reportagens que cada canal tem vindo a fazer das actividades diárias dos candidatos às próximas eleições. Lá vi como, de um modo geral, dos candidatos que em maior ou menor grau ainda se lembram de Abril e o lembram aos portugueses, são escolhidos momentos pouco ou nada entusiasmantes que alguns repórteres acompanham com palavras envenenadas. E como do candidato do tandém PSD/CDS-PP, o tal «senhor Silva» do companheiro Alberto João, são dadas imagens em que surge envolvido por largos grupos de apoiantes excitadíssimos pela ilusão de que está ali o homem que os vai salvar do desemprego que é como uma nuvem negra a ameaçar o País inteiro, que vai restituir a cada um a possibilidade de gastar, de consumir. Talvez porque os grandes patrões gostam dele e ele gosta dos patrões. Aliás, não é difícil descobrir nos quatro cantos do País muitos pobres basbaques que olham Cavaco como uma reincarnação de um Salazar que nas suas memórias surge limpo dos crimes que encomendou ou consentiu, das fomes e outras formas de miséria que sob o seu comando grassaram de Norte a Sul, da tacanhez verdadeiramente miserável que desaproveitou o facto de Portugal ter sido, graças à geografia e apenas a ela, uma terra em paz numa Europa devastada pela guerra. Também os patrões gostavam de Salazar, o apoiavam tal como o actual grande patronato apoia Cavaco, e nem por isso o País deixou de ser, nesses anos atrozes, uma paisagem de desgraça e miséria. No silêncio, é certo: eram miséria e desgraça que não podiam ser notícia. E por isso «não existiam». Pior: por isso continuam a não existir, porque a realidade das décadas de Salazar continua a não ser notícia, sendo substituída por uma falsificação com tintas de nostalgia por qualquer coisa que não houve. Com razão ou sem ela, suspeito de que, muitas vezes, é essa falsificação que acciona mãos e gargantas que aplaudem em Cavaco um novo Salazar. Que aplaudem a impostura. Porque a verdade, não sendo notícia, não existe. Como lembrou Fernando Paulouro.


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