Em nome de D. José e da Igreja ...

Jorge Messias
A recente Mensagem de Natal do Cardeal Patriarca tem aspectos espantosos. E a primeira «coisa de espantar» é que D. José dê à sua opinião pessoal um carácter dogmático, universal, quase divino. Fala de cátedra e declara dirigir-se a todos os portugueses, o que pressupõe um universo de trabalhadores, de mulheres, de desempregados, de velhos, de jovens, de sem-abrigo, de deficientes, de excluídos. Mas depois, toda a homilia ignora a cruel realidade desses mais pobres e fracos, fechando-se numa retórica doméstica só compreensível para os elitistas a que a hierarquia religiosa está intimamente ligada.
D. José refere alguns dos medos colectivos mas prefere não lhes identificar as causas. Medo da generalização da violência e da insegurança - que o capitalismo defende como seu direito e pratica em relação aos fracos. Medo de perder o trabalho ou não conseguir o primeiro emprego - pavor causado pelas estratégias de saque das forças económicas que a igreja apoia e encobre. «Receio de que falhe a relação de amor em que se depositou toda a confiança... a aflição das crianças perante a desavença dos pais»! Mas onde quer chegar D. José com tão líricas considerações?
O cardeal não se demorou no lamaçal em que ainda mal patinhava. Virou-se para os céus e bradou aos crentes: «É preciso enfrentar as realidades que nos atemorizam, mas isso só é possível se vencermos o medo. Nossa Senhora prometeu aos Pastorinhos: - Não tenhais medo. O meu Imaculado Coração triunfará!». Ficámos, assim, em presença de mais um documento esclarecedor, a atestar a máxima de que a religião é o ópio do povo. E, também, a revelar os medos de D. José. Medo que os cidadãos católicos se rebelem contra os senhores do dinheiro e contra as cumplicidades da sua própria hierarquia. Medo de que eles exijam os seus direitos, pela denúncia, pela acção directa e pela expressão do voto nas urnas. Ou que, no quadro confessional, se ergam contra as posições ultraconservadoras do alto clero e reclamem as reformas profundas que possam reconduzir as comunidades cristãs às fontes ideológicas da sua doutrina inicial.

Os medos e a pobreza

O panorama sócio-político que envolve a actual sociedade portuguesa não justifica quaisquer receios quanto à liberdade religiosa, ao financiamento da igreja ou à segurança dos cultos. Não se entendem, portanto, os medos de D. José. É pura chicana o seu alarme quando declara: «Que ninguém queira expulsar a Igreja da cidade»! E é pura mentira (como D. José, melhor que ninguém entende) quando acrescenta: «porque ela é, na sua pobreza e simplicidade, portadora de um anúncio de libertação: é possível viver em paz, amarmo-nos uns aos outros como irmãos, defender quem é atacado ou esquecido, consolar quem está triste, porque um Salvador nasceu para nós e continua vivo, no triunfo da sua Realeza». Cavaco Silva diria o mesmo.
É evidente a falsidade destas afirmações. A igreja católica portuguesa não só é rica como é também determinante na definição das estratégias do grande capital. Possui e dirige os bancos, as empresas e os institutos financeiros geridos pelo Opus Dei. Beneficia dos privilégios que a Concordata lhe garante e o governo amplia continuamente. Gere a maior rede assistencial do país (o chamado «Lobby da Caridade») formada por entidades com estatutos mistos, uns não lucrativos, outros sim. Assim, qualquer outro grupo financeiro, distribui o seu dinheiro de forma desigual. Há misericórdias pobres e misericórdias ricas. Há IPSS que vivem com dificuldades e as que gozam de tão invejáveis créditos que podem, por exemplo, investir no imobiliário, na construção civil, no turismo ou no negócio das seguradoras. Há mutualidades católicas que vivem das esmolas da igreja e da tenacidade dos elementos locais mas outras há, ligadas sobretudo à banca e às caixas de aforro espanholas, que gerem parte dos grandes lucros do mercado de capitais. Já para não falarmos nos inesgotáveis fluxos de dinheiro e de poder que escorrem das universidades e colégios católicos, do Santuário de Fátima ou das insondáveis fundações. A igreja católica portuguesa não é pobre, nem é simples. No tempo presente, é pilar insubstituível do sistema capitalista o qual lhe permite, na maior das impunidades, não prestar contas, não declarar os bens que possui, nem ser financeiramente fiscalizada.
Os católicos só têm a temer os seus aliados do grande capital. E é essa a verdadeira raiz de todos os medos. Porque, a paz e a segurança da igreja apenas poderão ser garantidas numa sociedade que se afirme pela justiça e pelo mútuo respeito entre os cidadãos, pela justa distribuição da riqueza e pelo acatamento efectivo da Constituição da República.


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