Notícia da perversão

Correia da Fonseca
A bem dizer aquilo não foi um bofetão, nem sequer uma bofetada de rotina, terá sido o que é costume designar por «enxota-moscas». Foi o bastante, porém, para que SIC, TVI e mesmo RTP falassem em violência no seu já habitual tom de alarme que tanto usam e estimam e, mais ainda, conferissem ao episódio o estatuto de mais importante acontecimento nacional nos seus noticiários da hora de almoço no passado dia 2. SIC e TVI abriram mesmo aqueles serviços noticiosos com a reportagem do incidente havido no aeroporto. Entende-se: nos seus critérios de interesse jornalístico nada acontecera no País de mais importante, pois detrás do sopapo, ou lá do que aquilo foi, estava nada menos que a transferência para o Benfica do ex-guarda-redes do Vitória de Setúbal, também pretendido e mesmo disputado pelo Futebol Clube do Porto. Para os que, situados na condição de «emigrados do interior», para usar uma expressão em tempos usada noutro lugar e noutros contextos, estranha que a viagem de Setúbal para Lisboa tenha tido escala pelo aeroporto da Portela, explica-se que o pretendido mancebo vinha do Brasil aparentemente escoltado por Luís Filipe Vieira e outros. Tudo bem, tudo mais natural do que pode parecer. O que não parecerá natural a entendimentos ainda não rendidos à escala de prioridades em vigor nos media é que as três estações de TV, que enchem de imagens e sons o País inteiro e de ideias a população que o habita, tenham colocado à cabeça dos seus tele-noticiários a disputa de um jogador de futebol. Para mais no primeiro dia útil do ano, depois de horas de um abrandamento do fluxo noticioso em consequência do fim-de-semana coincidente com a passagem de ano. Pois não é crível que não tenha acontecido no País, entretanto, nada que merecesse maior relevo informativo. E, de resto, cada um de nós bem sabe que aconteceu e que não seria preciso procurar muito para encontrar outras e mais importantes notícias.

Castrar a cidadania

Ia eu terminar o parágrafo anterior de outro modo, escrevendo «outras e mais significativas notícias», mas sustive-me: é que a transferência de um jogador de futebol e de um sopapo quase apenas aflorado, quando colocados no topo dos noticiários TV transmitidos para um País inteiro, acaba por adquirir um significado que aponta para uma situação de autêntico escândalo, só não reconhecida como tal por andarmos todos ou quase todos, em maior ou menor grau, como que anestesiados pela habituação. Porque a anestesia começou a chegar há muito tempo e veio pé-ante-pé; porque a perversão traja de normalidade e já não damos por ela. Bem vistas as coisas, a notícia da chegada do rapaz e do «enxota-moscas» havido, quando entronizada onde a colocaram, torna-se notícia de uma outra coisa: da perversão desavergonhada a que se chegou no domínio da grande informação distribuída pela TV, cuidadosa e repetidamente despejada no domicilio de cada cidadão e, por consequência, inoculada na cabecinha da generalidade dos portugueses. E não há mínimos sinais de que isto preocupe alguém com responsabilidades no destino do País e, por evidentíssima inerência, do que pensa a maioria da gente que o habita. Não se preocupa, pelos vistos, o governo que já tomou posse há mais de um par de meses e por isso terá tomado consciência do que está acontecer, se é que o ignorava antes, o que aliás é inverosímil. Mais: mesmo sem saber que a Comunicação Social pode e deve ser incluída no conceito de «instituições democráticas», mas suspeitando que sim, inclino-me a crer que a presidência da República devia e podia preocupar-se com a situação a que se chegou, pois é obviamente escasso usar palavras lindas acerca da cidadania que se deseja e recomenda enquanto se desvia o olhar dos múltiplos tóxicos que a assassinam. E aqui está uma questão que parece de primeiríssima importância aos poucos ou muitos que, por dever de ofício ou não, perscrutam os media com olhos inquietos quando não alarmados, uma questão que parece reclamar a atenção, e depois a palavra, e depois ainda a possível acção, dos actuais candidatos às próximas eleições presidenciais. Não bastará talvez dizer, como já se ouviu a A e a B, que a grande Comunicação Social tomou partido e age em conformidade: será preciso dizer que ela está, aliás desde há muito, a matar a lucidez e a castrar a cidadania. O relevo dado à chegada do guarda-redes, pobre e inocente rapaz, é disso apenas mais uma notícia; mais um passo entre milhares no processo da perversão. Não sei se é possível que sejam tomadas previdências, sei, isso sim, que é imperativo que alguém as reclame.


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