Contra a desumanização do futebol

José Augusto
O erro, no futebol de hoje, é um factor humano do próprio jogo. Sem erros, o jogo-rei desumanizar-se-ia, como se desumaniza o xadrez praticado por dois computadores. Sem erro, o futebol tornava-se uma ciência, deixava de ser um jogo e perdia todos os benefícios lúdicos e pedagógicos que encerra.
No futebol, erram todos: os jogadores, nas suas acções técnicas ou cumprimento de exigências tácticas; os treinadores, nos planos que idealizam para o conjunto que orientam ou nos métodos de treino; os dirigentes, no modo como gerem os clubes, nas contratações que fazem, na postura cívica que assumem; os adeptos, no exacerbamento do clubismo, em prejuízo da homenagem que deviam prestar aos seus ídolos e à beleza do futebol; os dirigentes federativos, a maior parte dos quais, por impreparação ou busca de vã notoriedade, se serve da modalidade, em vez de servir a modalidade. E erram, claro está, os árbitros, os que têm a missão mais espinhosa de todos os envolvidos neste profundo fenómeno desportivo e social que é o futebol.
Obviamente que, sendo uma actividade que implica erros, todos os que os cometem, ou se pensa que os cometem, são criticados publicamente, desde as mesas dos cafés – essa instituição bem portuguesa – às aberturas dos noticiários televisivos, passando pelas páginas nobres dos periódicos, sejam eles desportivos ou não. No entanto, ninguém é mais zurzido do que os árbitros, embora as críticas aos homens que tradicionalmente vestiam de preto escondam, as mais das vezes, uma desculpa.
Por exemplo, uma equipa jogou visivelmente abaixo do que lhe era exigido, correram-lhe mal as coisas – há dias assim, como se diz! -, mas basta que nessa partida o juiz se tenha enganado uma vez, em seu desfavor, para que tal sirva de justificação para a derrota. São raros os técnicos e os directores que fogem a tirar partido desse erro involuntário para desculpabilizarem a má prestação dos seus atletas ou as incorrectas opções tácticas dos responsáveis técnicos.
Como se sabe, um jogo que espelha mais fielmente do que nenhum outro o espectro social que o rodeia terá forçosamente de reflectir o que de melhor, mas também e sobretudo, o que de pior essa sociedade encerra: a desonestidade, a desmedida ambição, a incultura desportiva, enfim... Não me repugna, por conseguinte, que haja gente boa e gente má no grande circo do futebol. E isto é válido, uma vez mais, para todos os que nele estão metidos, incluindo os árbitros.
Quando se perde, tudo é culpado: o vento, o sol, a chuva que alagou o terreno de jogo, a neve que cobriu o relvado, a bola que era muito leve ou muito pesada, a relva que estava demasiado alta ou demasiada baixa. Um treinador chegou a afirmar, em certa ocasião, que o seu conjunto tinha perdido porque, em grande parte dos noventa minutos, a equipa adversária jogara apenas com dez elementos!
Quero aqui contar um pequeno episódio passado nos fins dos anos sessenta ou princípio da década seguinte. Estava então em Coimbra, e era acérrimo adepto do União de Coimbra. A rivalidade entre futricas e estudantes ainda pairava no ar, sequela de tempos mais recuados. Ora, o União ia receber a Sanjoanense, e não podia jogar na Arregaça, sua «casa», nem no Municipal de Coimbra, pois ambos os recintos estavam interditados.
Perante esta situação, resolveram os dirigentes unionistas recuperar, numa semana ou coisa que o valha, o antigo campo do Loreto, onde há muito crescia mato. Era a única forma de se jogar em Coimbra.
Na manhã do dia do jogo, fui ver o «estádio». Fiquei estarrecido. Limpo o tojo, aquilo era uma área de terra solta, embora com balizas e marcações, e acentuadamente inclinada para um dos topos. O meu companheiro olhou para aquilo e estacou quedo e mudo.
Entretanto, aproximou-se o autocarro da equipa adversária. Os jogadores e Monteiro da Costa, o treinador, também quiseram ver, a tempo e horas, onde iriam actuar. Logo temi que fizessem marcha atrás para S. João da Madeira, perante a espectaculosidade do «estádio». Decidi-me a abordar o mister. Perante todos os jogadores, disse-me ele mais ou menos isto:
- Joguei em tempos neste mesmo campo, e hoje nem por isso está pior. Se destinaram que é aqui que temos de jogar, aqui jogaremos, e com imensa vontade de ganhar.
Quer dizer, não procurou encontrar causas antecipadas para uma eventual derrota. Ganharam. Se tivessem perdido, tenho a certeza absoluta de que Monteiro da Costa não referiria uma única vez o terreno como causa do desaire. São homens desta estirpe, hoje tão raros, que «darão a volta», um dia, ao futebolzinho que temos por cá. Um futebolzinho que, o sendo, nos dá mesmo assim algumas alegrias…mas também bastas tristezas!


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