O couro e o cimento

Afinal, explicações muito simples

José Augusto
Vivi anos e anos sem conseguir descortinar a relação íntima existente entre o couro e o cimento, duas realidades tão distintas como o chumbo e a água. O couro, é a bola de futebol, depois de ter deixado o mundo dos trapos e das meias e, mais tarde, da borracha; o cimento, é o universo empresarial, com preponderância da construção civil.
Na verdade, o desejo de qualquer homem do mundo dos negócios de vir a ser presidente de um clube de futebol, da 1.ª, 2.ª ou 3.ª divisão que seja, perceba ou não de uma área tão específica como é a de gerir impulsos e emoções de atletas, treinadores e associados, já para não falar dos aspectos financeiros, baralhou-me durante muito tempo as ideias.
No fundo, a explicação não é tão obtusa, como se verá mais à frente.
Em 1990, Khussam Al-Khalidi, filho de um milionário iraquiano, licenciado em Literatura por um instituto superior de Moscovo e accionista maioritário de uma empresa anglo-russa, comprou um clube de futebol. Comprou os «passes dos jogadores», o estádio, a sede e todas as restantes instalações pertencentes ao Krassnaia Pressnia, enfim, adquiriu tudo. O Krassnaia Pressnia, que agora não sei sequer em que divisão pára, é um clube (utilizo o presente porque pode ser que ainda exista) fundado em 1922, num dos bairros históricos e proletários de Moscovo. Nunca foi um dos grandes, e a sua popularidade esteve sempre a léguas de a de um Spartak, Dínamo, TCKA ou até mesmo do Torpedo, patrocinado pela ZIL, a célebre fábrica de camiões e de limusinas estatais.
Esta compra espantou muita gente. Não se percebia como é que um milionário investia rublos numa equipa simpática, mas muito modesta. E este absurdo levou a que o milionário Khussam Al-Khalidi fosse entrevistado no primeiro canal. Perguntaram-lhe: «Como é que se pode entender que um milionário, como o senhor, que não se desfaz de um kopeque sem que ganhe alguma coisa com isso, compra um clube que só pode dar-lhe prejuízo e dores de cabeça?»
A resposta foi esclarecedora, mas longe de convincente: «Torne a perguntar-me o mesmo daqui a dois anos, quando o Asmaral estiver na Liga dos Campeões. Veremos, então, quem está ou não a perder dinheiro».
É preciso dizer que o Asmaral subiu à segunda divisão e que, com o desmembramento da União Soviética, houve que fazer um reajustamento da composição dos clubes que disputavam a 1.ª divisão da Rússia. Quer dizer, o Asmaral, sem saber como, viu-se a disputar o escalão maior do futebol russo. Mas longe, é claro, das grandes e milionárias competições europeias.
Curioso é o facto de o repórter não se ter esquecido da compra do Asmaral e das declarações do iraquiano. Por conseguinte, dois anos depois, lá estava ele na pantalha a afrontar Khussam Al-Khalidi, e eu com a sorte de assistir. Disse-lhe: «Ora vamos lá ver: o Asmaral não ganhou nada até hoje. Portanto, ajuízo que só pode ter-lhe dado prejuízo. É ou não verdade?»
O resposta, por tão sincera, directa e esclarecedora, fez luz nas minhas cogitações e convenceu-me que couro e cimento são, afinal, duas realidades muito próximas: «Claro que o Asmaral, a equipa, não me deu dinheiro, antes pelo contrário. Mas ganhei muito dinheiro quando comecei a aparecer perante a Imprensa e as instituições como presidente deste clube. Deixei de ser um qualquer Khussam, passei a ser o senhor presidente do Asmaral. Outrora, quando pedia audiência a um ministro, para tratar dos meus negócios, esperava seis meses ou mais, e podia até não ser recebido. Hoje, nem sequer necessito de me fazer anunciar. Só isto, meu amigo, meteu-me milhões nos bolsos».
Acredito. Afinal, a explicação é simples.


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