Os sustos

Correia da Fonseca
Disponho-me a começar a escrever e a TV informa-me que estou no Halloween, o Dia das Bruxas. Não esperava. Apercebo-me depois que isto do Dia das Bruxas é uma invenção americana importada recentemente dos Estados Unidos, e julgo entender que se trata de mais um elemento, desta vez mais ou menos sorridente, da panóplia de terrores que é cultivada do lado de lá do Atlântico: monstros, catástrofes, apocalipses de diversos tipos e graus, são com eles e surgem abundantemente nos media, como facilmente nota quem a isso se dispuser. Em todo o caso, trata-se de um universo de faz-de-conta, por muito que eventualmente possa servir para assustar as gentes ou, na alternativa ou cumulativamente, para habituá-las à ideia de que o horror é efectivamente possível e pode chegar de um dia para o outro. Nem é preciso magicar muito para imaginar como, basta lembrar que os Estados Unidos detêm o mais vasto e variado arsenal de armas nucleares, químicas e biológicas do mundo, o que diariamente põe a sobrevivência do planeta no fio da navalha. Esta armazenagem verdadeiramente diabólica e terrivelmente real bastaria para nos manter preocupados se dela nos lembrássemos constantemente, e isto é de tal modo assim que até se poderia suspeitar de que os horrores de faz-de-conta também servem para que esqueçamos os terrores possíveis e efectivos ao mesmo tempo que, introduzindo sustos no nosso quotidiano, bloqueiam um tanto a capacidade de alarme. Além de que, bem se sabe, há outras razões para alarme e susto que não são nucleares, nem químicas, nem biológicas, mas também têm a ver com a Grande América mesmo que não o pareçam. Quem passe os olhos por um mapa do mundo e se lembre do que em muitos lugares ocorre quanto à mítica trilogia Fome-Peste-e-Guerra percebe logo do que estou eu a falar.

Assustar é preciso?

Por cá, apesar de tudo, as coisas não assumem o mesmo carácter de tragédia, mas convém reparar que, num registo muito mais «soft», os media fazem o que podem, com o habitual papel destacado desempenhado pela televisão. Nas últimas semanas foi, como se sabe, a gripe das aves, cuja pandemia foi anunciada em tom que a sugeria como certa, embora talvez não para a próxima semana. Chegou a coisa ao ponto de nos ser dito qual o número de mortos que ela há-de provocar, quase só faltando que nos fossem dados os nomes, as idades e as moradas de cada um dos defuntos. Manda a elementar justiça que se diga que o implícito apelo ao pânico não foi exclusivo do aparelho mediático português, bem pelo contrário: basta recordarmos aquele inocente papagaio que faleceu no Reino Unido onde entrara já engaiolado. Mas não caiamos no polo oposto e não inocentemos de todo a comunicação social lusitana: a prova da sua culpa ou, se se preferir, da sua leviandade, veio com o apelo oficial para um adequado comedimento. Diz-se que entretanto já alguma indústria químico-farmacêutica está a fazer bons negócios, mas esse é um capítulo aparte da estória. Retintamente português, isso sim, é a badaladíssima comemoração do terramoto de 1755 e do seu complementar maremoto, inevitavelmente acompanhado da sugestão de que horror igual pode acontecer de um momento para o outro. Até ao momento em que escrevo, a coisa quase assumiu o tom de comemoração festiva. Ora, acontece que Lisboa de 2005 não é exactamente a mesma de 1755, apesar de todas as suas possíveis vulnerabilidades e de indesculpáveis desmazelos, e também que a área destruída no século XVIII corresponde hoje a apenas uma pequena zona da capital do século XXI, o que nem sequer foi salientado. É claro que a tomada de todo o tipo de medidas cautelares contra um cataclismo sísmico é necessária, mas não parece que deva passar necessariamente pelo susto das populações que, como deve saber-se, estão sempre maduras para ele.
Ora, acontece que, se não estou enganado, também esta prática mediática de assustar as gentes é sobretudo made in USA, e a quem pareça que esta convicção é absurda convido a que repara na abundante linha catastrofista dos filmes que a TV portuguesa importa do lado de lá do Atlântico e depois nos impinge regularmente, com frequência singularmente acrescida nos fins-de-semana, quando a audiência infanto-juvenil é mais numerosa. Parece que nos Estados Unidos se usam muito. E eu fico a pensar, que é a minha obrigação e também o meu gosto. Será assim porque o sentimento de pânico reforça o reflexo do «salve-se quem puder» e tende por isso a quebrar eventuais tendências de solidariedade organizada, a reforçar o individualismo extremo e até a paralisar a reflexão?


Mais artigos de: Argumentos

Lutar em campo aberto...

Vamos ter, em breve, as «presidenciais». Excelente altura para se falar no que tem sido silenciado. Podemos, agora, lutar em campo aberto. Mesmo quando as forças em presença - a exemplo da hierarquia católica, da banca ou dos grandes lobbies - se pretendem sensíveis e recatadas, enquanto desmontam o aparelho do Estado....

<em>Uma longa viagem com Álvaro Cunhal</em><font color=0093dd>*</font><br>ou o seu retrato indirecto

É um notável documento sobre a personalidade e a vida de Álvaro Cunhal este livro de João Céu Silva, repórter do Diário de Notícias que, com invulgar persistência e empatia, percorreu várias regiões do nosso país, confrontando o texto do romance Até Amanhã, Camaradas e outras ficções de Manuel Tiago com depoimentos de companheiros de luta e amigos do antigo secretário-geral do Partido Comunista Português ou até mesmo simpatizantes que nesta ou naquela ocasião com ele privaram e o viram agir, desde a prisão a reuniões conspirativas ou campanhas eleitorais.