Onde os presos são fonte escrava de lucros

O sistema prisional norte-americano

Luís Gomes
Muitas organizações de direitos humanos consideram o sistema prisional norte-americano como um dos piores do mundo. Desde o 11 de Setembro evoluiu para bem pior, tendo-se acentuado as condições repressivas e os crimes racistas e xenófobos sobre as minorias.

Os presos passaram a ser tratados como autêntica mercadoria

Na terra dos Bush, as prisões tendem a ser todas de «alta segurança» e o dever inerente a qualquer Estado respeitador dos direitos humanos, de recuperar e reabilitar os presos é totalmente ignorado. O Estado norte-americano prefere simplesmente isolar os condenados.
Dados de 1997 revelam que nos EUA havia um milhão e oitocentos mil presos nas cadeias, mais do dobro do que na década de 80. Se somarmos, a esta população, os condenados a prisão domiciliária, liberdade condicional ou sob fiança, o número triplica.
Neste país estão presos cinco vezes mais negros do que o número de reclusos nas cadeias da África do Sul nos piores tempos do apartheid. Dados de 2001 do próprio Departamento da Justiça dos EUA revelaram que 5,6 milhões de pessoas tinham experiência prisional, o equivalente a 2,7 por cento da população adulta, estimada naquela altura em 210 milhões de pessoas. Acresce que o simples facto de terem cadastro retira-lhes a possibilidade de poderem votar em eleições.
Em 1974, havia nos EUA, 1,6 milhões de presos. Até 2001, a população prisional sofreu um vertiginoso aumento para 3,8 milhões.
Mantendo-se este ritmo, a ONG National Criminal Justice Comission, considera que, em 2020, estarão presos seis em cada dez afro-americanos.

Negócio de milhões

O facto de as cadeias terem tantos reclusos levou a economia privada a encontrar aí uma enorme fonte de lucro e negócio, através da privatização do sistema prisional norte-americano. O negócio tornou-se tão lucrativo que, em 1992, mais de 100 empresas se dedicavam ao que é classificado como mais um «ramo de comércio».
Em 1996, segundo o World Research Group, referia-se numa convocatória para uma reunião de especialistas destas empresas que «enquanto as detenções e as condenações crescem, os lucros também. Os lucros do crime».
Hoje em dia, a Corrections Corporation, empresa de prisões privadas, é uma das cinco mais bem cotadas na Bolsa de Nova Iorque.
Nascida em 1983, esta empresa, que vive à custa do trabalho gratuito dos presos norte-americanos, formou-se com capitais provenientes dos frangos fritos Kentucky, tendo aparecido no mercado com uma publicidade onde dizia pretender vender cadeias privadas como quem vende frangos de aviário.
No final de 1997, com as acções da empresa com uma cotação 70 vezes superior ao seu início, conseguiram internacionalizar o mercado das cadeias, construindo prisões também na Inglaterra, Austrália e Porto Rico, mantendo sempre a sua sede nos EUA.
Os presos passaram a ser tratados como autêntica mercadoria.
As empresas do ramo editam uma revista sobre os serviços que prestam aos estados e governos. A publicidade não tem qualquer limite de decência. A Modu Form, por exemplo, anuncia: «Os presos chegam-nos mais duros que nunca. Felizmente também os nossos produtos».
A Motor Coach Industries, mostra um modelo de carro-prisão que parece um canil dividido em jaulas de aço. Nos últimos 20 anos, as despesas públicas com o sistema prisional norte-americano aumentaram 900 por cento, essencialmente em investimentos e contratos de grande proveito e margem de lucro para as referidas cadeias - empresas privadas.

Maus tratos

O tratamento brutal dos presos nas prisões privadas chegou a extremos tão escandalosos que até os texanos – onde se encontram alguns dos mais reaccionários agrupamentos de extrema-direita – se assustaram com o descaramento e obrigaram as autoridades a rescindir, em 1998, alguns daqueles contratos.
O Texas é o estado norte-americano mais desrespeitador dos direitos das populações prisionais na América, aquele que aplica mais penas de morte, e onde George W. Bush, no exercício do cargo de governador, mandou executar quase duas centenas de presos.
Um dos mais graves problemas do sistema prisional nos EUA deve-se ao aumento vertiginoso do número de violações nas cadeias que, segundo a Human Rights Watch, se generalizam por todo o país. Num relatório elaborado em 2001, aquela organização não governamental revelava que «um em cada cinco detidos nas prisões municipais, estaduais e federais é violado e assaltado por outros presos».
Muitos reclusos em idade menor são sentenciados a cumprir penas em prisões para adultos. De acordo com a mesma ONG, qualquer pessoa mais fraca pode acabar «escravo» dos seus violadores, sofrendo os mais ultrajantes horrores, como repetidas violações sexuais e espancamentos colectivos.
Uma boa parte dos reclusos fica também encarregue de lhes lavarem a roupa, as celas, massajar-lhes as costas, cozinhar para eles e todo o tipo de tarefas. São ainda «alugados» a outros presos «veteranos» e até leiloados entre os presos veteranos.
Segundo o mesmo relatório, o pessoal e directores da cadeias permanecem indiferentes a este tipo de crimes que são da sua responsabilidade, ignorando-os ou até reagindo com hostilidade às queixas.
Muitos presos são castigados pelos guardas por denunciarem violações e a segurança prisional chega mesmo a aconselhar os queixosos a procurar a protecção, a troco de favores sexuais.
Segundo um relatório da Amnistia Internacional, também as condições de isolamento em muitas cadeias norte-americanas violam os padrões internacionais. Os detidos da prisão de Boscobel, no Wisconsin, não têm direito a qualquer tipo de exercício ao ar livre e só vêem os familiares através de um ecrã de vídeo.
Nos níveis mais restritivos, ficam fechados 24 horas por dia em celas de cimento, sem equipamentos, sem vista para fora, privados de qualquer leitura ou sem quaisquer programas ocupacionais, educacionais e outros. Mesmo o relógio lhes é retirado para que não saibam as horas.

Causas da violência

Para além dos avultados lucros provenientes da privatização do sistema prisional, outro motivo para estas constantes violações de direitos humanos prende-se com uma forma de fundamentalismo religioso que há décadas tem assento na Casa Branca e no executivo norte-americano.
Exortada pelo poderoso lobbie religioso denominado Coligação Cristã de que a família Bush é devota, a população norte-americana exige constantemente - como pretende fazer em Portugal a extrema-direita do CDS-PP - que juizes e procuradores imponham sentenças cada vez mais duras e prolongadas, supostamente com o propósito de dissuadir os criminosos.
Nos anos oitenta, a famosa campanha de «guerra contra a droga», encetada pelo presidente Ronald Reagan também esteve em total sintonia com esta corrente religiosa. A campanha levou à condenação de dezenas de milhares de americanos, na sua maioria afro-americanos e hispânicos, com penas que excediam em muito a duração de uma vida.
A maioria destes delinquentes - pequenos passadores não violentos e marginais envolvidos em transacções ilícitas para sustentar o próprio vício - foram sentenciados com penas de tal forma exageradas que violaram frontalmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Castigos Cruéis, Desumanos ou Degradantes.
Mas nem por isso diminuiu o tráfico e o consumo de drogas nos EUA ou a criminalidade.

Após o 11 de Setembro

Este «fundamentalismo» religioso americano ganhou novo alento e força com a eleição de Bush e com atentado às torres gémeas.
Como notou a Amnistia Internacional, o presidente norte-americano prometeu, em Janeiro de 2002, no seu discurso sobre o estado da nação, manter-se «sempre firme no respeito pelas inegociáveis exigências da dignidade humana». Mas apenas três dias após o atentado ao World Trade Center, declarou o estado de emergência nacional, dando início a uma perseguição e prisão de suspeitos só comparável com a famosa «caça às bruxas» de J. Edgar Hoover no começo da guerra fria, através de um conjunto de leis e restrições de direitos civis chamado irónicamente Acto Patriota, o Patriot Act.
Nessa altura, milhares de antifascistas, activistas ou membros de ONG’s progressistas e do movimento anti-guerra foram presos, perseguidos, discriminados e despedidos e continuam a sê-lo por simples actos de suspeitas ou denúncias não comprovadas.
É também significativo o aumento de crimes e ocorrências motivas pelo racismo e a xenofobia com milhares de cidadão não brancos.
Apenas nas primeiras semanas após o 11 de Setembro e sob as ordens de Bush foram detidas mais de mil pessoas de origem estrangeira, na sua maioria provenientes do Médio Oriente(1). Segundo a Amnistia Internacional, muitos ficaram detidos em locais desconhecidos pelas famílias e advogados, sem qualquer acusação mas apenas na condição de testemunhas, em condições totalmente desumanas, sob tortura e todo o tipo de humilhações.
Dois meses após o atentado, Bush anunciou que os detidos seriam julgados por um «misterioso» corpo chamado Comissão Militar.

«Comissões Militares»

Não tendo nem as obrigações e deveres de um tribunal normal, nem dos conselhos de guerra que se regem por normas internacionais que devem ser obrigatoriamente respeitadas, estas comissões foram criadas para que se pudessem realizar detenções violando, sempre que considerem necessário, todas as convenções, acordos e regras do direito internacional que garantem o mínimo de dignidade aos reclusos.
Um Conselho de Guerra obriga o Estado a ter que respeitar normas processuais, a transparência e o direito ao recurso, enquanto estas comissões militares não têm que respeitar nada nem ninguém.
Proferindo discursos inflamados que davam a sensação de os EUA estarem à beira de um «Armagedão», Bush aproveitou a campanha orquestrada com o Antraz - o famoso tóxico em pó branco que teria aparecido em caixas de correio - para ignorar todas as normas do Direito Internacional e manter as ditas comissões.
Assim, qualquer suspeito pode ser preso, detido e julgado em audiências secretas, sendo-lhe negado o acesso às provas contra si aduzidas e o direito a recurso, debaixo da constante iminência de ver ser-lhe aplicada a pena de morte. Ficou criado um sistema de justiça paralelo, a lembrar os tribunais sumários fascistas ou «especiais».

Guantánamo e os cinco prisioneiros do império

Nos primeiros dias de 2002, o governo norte-americano revelou a sua verdadeira face ao enviar para a sua base militar, também ilegal, em Guantánamo, Cuba, centenas de «suspeitos de terrorismo», muitos capturados no Afeganistão e um pouco por todo o mundo.
A decisão de enviá-los para Cuba deveu-se à recusa do Pentágono de lhes outorgar o estatuto de prisioneiros de guerra, já que assim teriam a protecção da lei internacional que lhes garantia o julgamento em Conselho de Guerra. As centenas de presos vivem em condições desumanas, impossibilitados até de questionar sobre a legalidade das suas detenções. Se o capital financeiro criou os paraísos fiscais como o da Madeira para fugir ao fisco e lavar dinheiro, o Governo norte-americano criou, através deste modelo, um sistema penitenciário livre de quaisquer compromissos respeitantes ás convenções internacionais sobre os direitos humanos dos reclusos. Guantánamo tornou-se numa verdadeira «off-shore» penitenciária para deixar as mãos livres dos lacaios de Bush e da CIA para torturar e humilhar os reclusos.
Sobre este facto, as instâncias internacionais têm primado por um quase total silêncio cúmplice com as autoridades norte-americanas e a existência de centros de reclusão deste tipo têm-se multiplicado como cogumelos, particularmente em países que se tornaram alvo de agressão norte-americana.
Subordinados a um estatuto totalmente ilegal e submetidos a duras condições de detenção estão também os cinco prisioneiros cubanos, acusados sem qualquer prova, de terem efectuado espionagem contra os EUA, como consta da acusação.
Estes cidadãos apenas pretendiam evitar que atentados terroristas congeminados e provenientes de Miami, na Florida, fossem executados pela máfia terrorista cubano-americana, contra o Estado socialista cubano.
Legitimando a existência de grupos com aquele propósito nos EUA, o FBI respondeu a uma denúncia efectuada por - esses sim, terroristas - dissidentes cubanos e efectuou as cinco detenções.
Estão desde a sua detenção, em 1998, incomunicáveis e com enormes restrições para poderem consultar os seus advogados, receber visitas, até de familiares e com a correspondência vigiada que é, na maior parte das vezes, devolvida aos remetentes.
Os cinco anti-terroristas cubanos, só a 9 de Agosto deste ano viram as suas sentenças anuladas por três juizes de um Fórum de Apelações em Atlanta, no Estado da Geórgia.
Os magistrados reconheceram os argumentos da defesa ao terem alegado a injustiça do anterior julgamento que os pôs no corredor da morte, e que a anterior sentença tinha sofrido as pressões da máfia cubana em Miami.
No dia 9 de Setembro, uma declaração do parlamento cubano sobre os cinco foi a base da discussão nas Nações Unidas sobre as medidas a aplicar para eliminar o terrorismo internacional. O documento foi enviado ao secretário-geral da ONU, Kofi Annan, e denuncia a injustiça a que os cubanos estão submetidos.
Já no dia 27 de Maio, o Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias da Comissão de Direitos Humanos da ONU tinha determinado que a privação de liberdade dos cinco é arbitrária e ilegal, tendo exortado o governo norte-americano a pôr-lhe fim.

O império da morte

Os Estados Unidos são o país que mais pessoas executa em todo o mundo ocidental. Segundo o Departamento de Justiça norte-americano, de Abril a Junho de 2001, foram executados, nos Estados Unidos, 66 reclusos, fazendo deste país um caso único no mundo chamado civilizado.
Em 2003, estavam condenadas à morte 3700 pessoas nos EUA e nos últimos anos houve um vertiginoso aumento de condenações e execuções, de que é exemplo o número de executados naquele ano, que foi de 65. Nos últimos dois anos pouco foi o decréscimo: os Estados Unidos aplicaram a sentença a 59 presos, em 2004.
Os Estados da Califórnia, Texas e Florida são os que decretam mais condenações com o primeiro destes a apresentar o impressionante número de 625 condenados, dados de Julho de 2004, segundo o Fundo de Defesa Legal, NAACP.
Desde que a ciência proporciona análises com ADN, tem ficado mais evidente que, em muitos casos, a condenação à morte atinge reclusos totalmente inocentes.
Já em 1972 - no começo das análises feitas com ADN - um estudo revelou que pelo menos 350 pessoas foram erradamente condenadas à morte nos EUA durante o século XX, não apenas por erro, mas também em consequência de conspirações policiais, de procuradores, juristas, testemunhas, advogados de defesa e até de jurados.
Além destas situações, muitas vezes, a falta de consistência da condenação é encoberta com violações grosseiras no andamento dos próprios processos jurídicos.
A 3 de Setembro de 2003, o Supremo Tribunal de Justiça dos EUA anulou 100 condenações nos Estados do Arizona, Montana e Idaho, por ter-se provado que careciam de validade por terem sido decretadas por juizes, em vez de deliberadas por jurados. No entanto, estes argumentos nada têm evitado, prosseguindo as execuções através de fuzilamentos, injecções letais, cadeira eléctrica ou gaseamentos.
Os EUA são uma câmara de morte, também para muitos dos seus cidadãos.

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Obras consultadas: «O Livro negro da América» de Michael Scowen e
«De pernas para o ar», de Eduardo Galeano.
(1) – A este respeito importa recordar dois filmes significativos e, por isso, ostracizados pela crítica jornalística, também por cá totalmente dominada pela direita: «Terra de Abundância», de Wim Wenders e o mais recente e tão mal tratado, «Colisão», de Paul Haggis.


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