Idosos, memória e teia
O passado dia 1 foi o Dia Mundial da Música e o Dia Mundial do Idoso. Da música pouco ou nada se falou então na TV, o que não espanta porque, é sabido, a televisão portuguesa não gosta de música. Quanto a idosos, do pouco que ouvi o que mais notável pareceu foi que uma das agora habituais reportagens acerca da campanha para as eleições autárquicas tenha sido dedicada a candidatos que, por exercerem presidências de câmaras há vários mandatos, o que implica serem mais ou menos idosos, são designados por «dinossauros». O epíteto não é novidade, bem se sabe, o que constituiu inovação foi a relação directa entre a designação e a comemoração do Dia do Idoso. E não me parece que tenha sido uma relação elegante e inocente. Tenho como certo que isto de salientar que um autarca que se recandidata é «idoso» implica uma sugestão desvalorizante, e duvido de que a palavra «dinossauro» não comporte, também ela, pelo menos alguma carga descredibilizante e tendencialmente pejorativa. Além de outros eventuais aspectos, a etiqueta de «dinossauro» colada à imagem pública de quem faz política, autárquica ou não, denuncia um duplo preconceito insinuado: a suspeita de alguma desactualização e a ignorância, voluntária ou casual, de que a idade num cidadão que exerce funções políticas ao longo de vários anos implica não apenas experiência mas também memória política. Ora, acontece que a memória política é no nosso País muito incómoda para os que empenhadamente se esforçam por suprimi la, e acontece também que o permanente trabalho para essa supressão muito se acantona na área da comunicação social. Neste quadro, que ainda haja uns tantos autarcas que detenham memória do passado político e que, ainda por cima, queiram continuar a ser autarcas, não pode cair bem nos que conscientemente ou não se integram numa espécie de campanha cujo estribilho bem podia ser «inovar é preciso, lembrar não é preciso». Pois, como bem se compreende, a quem tem memória, a quem lembra, é menos fácil mentir.
O incómodo passado
Não quero dizer com isto que o jornalista que se lembrou de fazer uma reportagem sobre os autarcas «dinossauros» no Dia Mundial do Idoso teve a premeditada intenção de desvalorizar os candidatos, até porque os candidatos nessa situação eram de diversos partidos. A questão não é assim tão simples, mas por isso mesmo é capaz de ser ainda mais grave. É que, neste caso como em muitos outros, venenos que são regularmente e desde há muito espalhados no ar mediático (e não só) que respiramos como que coalham e surgem no trabalho de jornalistas quase sempre mais ou menos jovens que, por o serem, facilmente os absorveram sem sequer se darem conta do que lhes aconteceu. É assim com o generalizado e muitas vezes não dissimulado desprezo pelos velhos, caridosamente mas também estrategicamente chamados «idosos». É claro que não é apenas deste tempo, até porque tem alguma coisa de instintivo, o sentimento de que o mundo começou de facto quando cada qual nasceu, ou apenas um pouco antes, e até de que esse nascimento é que dá sentido a tudo quanto o antecedeu. Sucede, porém, que essa irreflectida consciência do mundo e da vida é enganosa, falsa, não ajuda ninguém a entender o mundo e a vida, não ajuda mesmo nada um qualquer jornalista a entender a sociedade que é simultaneamente a matéria prima e a destinatária do seu trabalho. Em compensação, favorece os que têm interesse em esconder o passado, isto é, em desvalorizar a memória quando não possam arrasá la ou simplesmente proibi la, o que também tem acontecido muito ao longo dos tempos. No caso que é hoje o tema de arranque desta coluna, não terá havido feia premeditação, mas houve quase sem dúvida o efeito de preconceitos longamente semeados. Não nos esquecemos de que os comunistas são muitas vezes tratados como sendo apenas um magote de «dinossauros», e isto não tanto por muitos deles serem idosos como porque eles prezam a memória política como um factor indispensável para o entendimento das coisas. Aplicações práticas desta estratégia são de todos os dias: por exemplo, os direitos adquiridos são coisas do passado cuja defesa é feita num espírito «dinossáurico» que se recusa a entender o presente e a necessidade de «inovar». Mais ainda, a fundamental sabedoria de que no mundo há exploradores e explorados com interesses contraditórios que se consubstanciam na luta de classes, entendimento que é denunciado como coisa do passado, de «dinossauros», de idosos. Assim se vai tecendo a teia de mentiras que, um dia, pode prender não moscas, mas jornalistas incautos. Como, talvez, neste Dia Mundial do Idoso.
O incómodo passado
Não quero dizer com isto que o jornalista que se lembrou de fazer uma reportagem sobre os autarcas «dinossauros» no Dia Mundial do Idoso teve a premeditada intenção de desvalorizar os candidatos, até porque os candidatos nessa situação eram de diversos partidos. A questão não é assim tão simples, mas por isso mesmo é capaz de ser ainda mais grave. É que, neste caso como em muitos outros, venenos que são regularmente e desde há muito espalhados no ar mediático (e não só) que respiramos como que coalham e surgem no trabalho de jornalistas quase sempre mais ou menos jovens que, por o serem, facilmente os absorveram sem sequer se darem conta do que lhes aconteceu. É assim com o generalizado e muitas vezes não dissimulado desprezo pelos velhos, caridosamente mas também estrategicamente chamados «idosos». É claro que não é apenas deste tempo, até porque tem alguma coisa de instintivo, o sentimento de que o mundo começou de facto quando cada qual nasceu, ou apenas um pouco antes, e até de que esse nascimento é que dá sentido a tudo quanto o antecedeu. Sucede, porém, que essa irreflectida consciência do mundo e da vida é enganosa, falsa, não ajuda ninguém a entender o mundo e a vida, não ajuda mesmo nada um qualquer jornalista a entender a sociedade que é simultaneamente a matéria prima e a destinatária do seu trabalho. Em compensação, favorece os que têm interesse em esconder o passado, isto é, em desvalorizar a memória quando não possam arrasá la ou simplesmente proibi la, o que também tem acontecido muito ao longo dos tempos. No caso que é hoje o tema de arranque desta coluna, não terá havido feia premeditação, mas houve quase sem dúvida o efeito de preconceitos longamente semeados. Não nos esquecemos de que os comunistas são muitas vezes tratados como sendo apenas um magote de «dinossauros», e isto não tanto por muitos deles serem idosos como porque eles prezam a memória política como um factor indispensável para o entendimento das coisas. Aplicações práticas desta estratégia são de todos os dias: por exemplo, os direitos adquiridos são coisas do passado cuja defesa é feita num espírito «dinossáurico» que se recusa a entender o presente e a necessidade de «inovar». Mais ainda, a fundamental sabedoria de que no mundo há exploradores e explorados com interesses contraditórios que se consubstanciam na luta de classes, entendimento que é denunciado como coisa do passado, de «dinossauros», de idosos. Assim se vai tecendo a teia de mentiras que, um dia, pode prender não moscas, mas jornalistas incautos. Como, talvez, neste Dia Mundial do Idoso.