A desafinação

Correia da Fonseca
«Música no Ar», programa da RTP, propõe-se fazer uma revisitação do que foi ao longo de cerca de cinco décadas a presença da música portuguesa na rádio e na televisão. Da música dita ligeira, entenda-se, pois pela outra, a que tem a sua residência habitual em grandes ou pequenas salas de concerto, nunca a RTP teve grande apreço, acontecendo que por vários sinais se pode suspeitar de que agora já nem se lembra bem do que é. De qualquer modo, este propósito de lembrar a música portuguesa no audiovisual ao longo de meio século, mais ano menos ano, é em princípio simpática. É certo que quanto à música actual não parece que a RTP se sinta fascinada, pois bem se sabe como se tornaram raros os momentos em que a estação pública chama para programas seus a boa música que por aí vai surgindo, mas é claro que a melhor altura para falar no que não se faz e devia ser feito não é, seguramente, um dos momentos em que se assiste a um gesto que, no mínimo, decorre de simpáticas intenções. Volver para a música das décadas 50 e seguintes, a portuguesa mas também alguma outra nascida noutros lugares mas que por cá foi êxito, um olhar tocado por uma benévola nostalgia, não me parece nada mal. É claro que, nisto como em tudo, muito está dependente do modo como uma vaga sugestão de «produção de prestígio» que era para ser mas não foi porque não houve dinheiro para tanto, tendo sido necessário cortar um pouco por todo o lado. Quanto a isso, paciência!, já sabemos que o País está pobre e é preciso fazer sacrifícios. Porém, certos aspectos do «Música no Ar» são pelo menos débeis, porventura tontos, talvez coisa pior, sem que o sejam por razões de ordem financeira ou afim, pois felizmente nem o bom-gosto nem o bom-senso têm preços altos. Assim, não se me afigura de excelente escolha o tom de caricatura depreciativa com que actuais profissionais do audiovisual fingem reproduzir gestos e tiques de antigos profissionais do audiovisual. E o pior é que isso não é o pior, com perdão de má redacção aqui usada.

Brincar com coisas sérias

O pior, mesmo o pior de tudo, é a inclusão total ou escassamente crítica de imagens e sons típicos da apropriação ilegítima pelo governo fascista-colonialista da televisão portuguesa que toda a população pagava. Claro e mesmo chocante exemplo dessa prática foram as imagens relativas às guerras de África, inseridas de tal modo que bem puderam ser lidas como momentos de saudade ou, pelo menos, suscitadores de saudades nos que nunca puderam ou quiseram aprender que a chamada «guerra do Ultramar», designação premeditadamente portadora de uma mentira fundamental e contudo nunca inteiramente escorraçada do quotidiano democrático, foi não apenas ilegítima mas também criminosa. É certo que pouco depois, se não logo a seguir, ouviu-se um sujeito a cantar pessimamente «Os Vampiros» e assistiu-se à suposta intrusão de dois elementos da PIDE numa reunião de antifascistas. Foi, porém, uma reconstituição tão tosca, tão a aflorar o ridículo, que alguém ainda mais suspeitoso que eu poderá ter desconfiado de que tamanha inabilidade não terá sido resultado de desinteresse e atabalhoamento, nem sequer de incompetência, mas sim de motivos mais profundos e mais feios. Por mim, dou de barato que aquilo foi sem querer, não foi por mal. De qualquer modo, porém, o lamentável episódio, embora levado à conta de irreflexão, vem lembrar que certos momentos da História do nosso País, designadamente os anos da ditadura fascista, não pode a RTP abordar com a mesma leviandade com que apresenta o «Ele e Ela» como canção aparentemente simbólica dos Festivais da Canção. Bem basta que, como se sabe demasiado bem, a RTP nunca se tenha verdadeiramente empenhado em narrar ao País o que foi o regime que Abril derrubou, os crimes por ele praticados, a resistência antifascista que consubstanciou a honra do povo português não apenas na recusa da opressão mas também das infâmias que o governo cometeu ao longo das décadas (entrega de refugiados espanhóis aos fuzilamentos franquistas, cumplicidades com o eixo Berlim-Roma que chegou ao ponto de receber o ouro roubado pelos nazis nos campos de extermínio, repressão dos movimentos independentistas africanos que incluiu o extermínio de populações, o uso de napalm e outros horrores). Tudo isto, e o muito mais que seria possível escrever, é aqui referido para acentuar que certos aspectos da nossa História ainda não remota não podem ser abordados de qualquer modo. Como repete o bom-senso popular, há coisas com que não se brinca. Ou, dizendo-o querendo usar uma imagem compatível com o título de «Música no Ar», há partituras em que não se pode correr o risco de desafinação.


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