Nova Orleães

Significado de um drama

Albano Nunes

Temos de ser cada vez mais vigilantes e persistentes na luta

Nunca será demais o que se escrever sobre o drama de Nova Orleães e o seu significado político profundo.
Em primeiro lugar pelo que evidencia em relação à sociedade norte-americana. Aquele «modo de vida» que uma avassaladora propaganda pretende exemplar e em nome do qual os EUA estão a incendiar o planeta, revela-se profundamente injusto e desumano, estruturado em profundas fracturas sociais, divisões de classe, barreiras raciais. As vítimas da tragédia desencadeada pelo Katrina são sobretudo trabalhadores, pobres, negros. E isso não pôde ser escondido do mundo inteiro, incluindo grande parte daqueles a quem Bush quer impor «liberdade e prosperidade» a tiro de canhão.

Em segundo lugar pela acusação que representa em relação às políticas do mais desenfreado neoliberalismo da administração Bush. Políticas que combinam o domínio dos grandes grupos económicos e a acelerada concentração do capital e da riqueza com a absolutização do papel do mercado, o «Estado mínimo» em matéria de responsabilidade social, a receita do «utilizador pagado», a cultura da competição individualista e do «salve-se quem puder». Aqueles que em Nova Orleães não tinham dinheiro, meios de transporte próprio, local seguro para onde ir, esses não puderam salvar-se, ficaram criminosamente abandonados à sua sorte. É isto que nos apresentam como exemplo do capitalismo «triunfante», aquilo que querem impor-nos na Europa custe o que custar com a moeda única, o «Pacto de Estabilidade», a «Estratégia de Lisboa». É este «modelo» que a moribunda «constituição europeia» pretende consagrar e que nós queremos definitivamente enterrar. É isto que – trate-se de Blair na Grã -Bretanha, de Schroder na Alemanha ou de Sócrates em Portugal – a social-democracia apóia com canina devoção, ao ponto de fazer o trabalho sujo que a direita, por falta de base social e política de apoio, é incapaz de fazer.

Em terceiro lugar pelas fragilidades e limites que evidencia a superpotência. A pretensão do imperialismo norte-americano à hegemonia planetária assenta numa enorme supremacia militar e (mais discutível) tecnológica. Mas a sua base económica está roída por contradições insanáveis e nem a ditadura do dólar nem um monumental duplo déficit podem durar eternamente. E quanto à solidez do seu sistema político e à coesão do seu tecido social estamos conversados. A grande dasafeção do povo norte-americano em relação ao sistema eleitoral-farsa e a profunda fractura social e racial falam por si. A par da força do dinheiro (de quem o tem) é a força da manipulação mediática, da demagogia e da mentira ( as condições em que foi desencadeada a guerra do Iraque não devem ser esquecidas) que sustentam a fachada interna do poder dos EUA. Não pode ter grande futuro um sistema que em 24 horas mobiliza meios colossais para invadir um Estado soberano e não é capaz de socorrer em tempo útil as vítimas do Katrina, ou que esconde o número de vítimas de Nova Orleães ao mesmo tempo que, com aproximação à centena, divulga números trágicos sobre o Sudão para justificar a agressão militar em preparação.

É em episódios como o de Nova Orleães que a fealdade do capitalismo se revela em todo o seu explendor, desvendando a face interna da política externa desumana e brutal que lhe conhecemos, e confirmando as taras e fraquezas de um sistema de classe historicamente condenado. Mas temos de ser cada vez mais vigilantes e persistentes na luta. As ambições imperiais e a perspectiva de uma humilhante derrota no Iraque podem empurrar a reacção fascizante dos EUA para aventuras de catastróficas proporções. A revelação (TSF, 11 de Setembro, 8 horas da manhã) da existência de um relatório «não oficial» do Pentágono preconizando ataques nucleares preventivos para «dissuadir o uso de armas de destruição massiva», é disso mais um inquietante sinal, a exigir forte combate.


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