O desprezo

Henrique Custódio
Kathleen Blanco, governadora do estado da Luisiana, nos EUA - e por isso com jurisdição directa sobre a cidade de Nova Orleães, devastada pelo furacão «Katrina» e submersa em água -, declarou às televisões e ao mundo que «a ac­tual si­tu­ação é in­to­le­rável! Estou fu­riosa!».
Estava «furiosa» com os actos de pilhagem que galopavam pela cidade, pelo que decretou que «a po­lícia e o exér­cito têm or­dens para atirar a matar e fá-lo-ão!».
Cinco dias depois da tragédia, ao quinto dia consecutivo de nada fazer para resgatar as dezenas de milhares de pessoas encurraladas na mais desesperada miséria, cinco dias depois de ter deixado um furacão com data anunciada e violência prevista transformar-se num desastre humanitário de proporções bíblicas, cinco dias depois de uma tragédia que, nesse curto espaço de tempo, matara não se sabe quantos milhares de pessoas e encurralara centenas de milhares de outras no limiar mais extremo da sobrevivência, a governadora Kathleen Blanco não se angustiou, preocupou ou combateu a tragédia.
Ao quinto dia, decidiu ficar «furiosa» e ordenar que fossem abatidos a tiro todos os interceptados a mexer na sacrossanta «propriedade privada», mesmo que, como se viu nas televisões, a maioria dos roubos e pilhagens ocorresse na desesperada luta pela sobrevivência, por seu lado desencadeada pela total ausência de apoio das autoridades.
É um retrato a corpo inteiro não apenas da senhora Blanco, mas sobretudo da política imperialista dos EUA, onde por trás da retórica não há um pingo de humanismo, de justiça social, de respeito pelos povos próprios ou alheios.
Não é por acaso que foi, também, apenas ao quinto dia que o presidente George W. Bush decidiu «sobrevoar» Nova Orleães e despejar mais um chorrilho de vacuidades, deslocação que, mesmo assim, foi pressionada pelo fragoroso clamor que alastrava pelo país, por inteiro chocado com a total inépcia de todas as autoridades - locais, estatais e federais – a prevenir a catástrofe e a evacuar as populações.
Foi, aliás, o que aconteceu no fim-de-semana passado na RP da China, país olhado tão sobranceiramente pela «grande democracia americana» e onde, em escassas horas, foram evacuadas 600 mil pessoas nas províncias Fujian e Zhejiang para as afastar do furacão «Talim», como aconteceu também este fim-de-semana no Japão, onde se evacuaram multidões para as abrigar do furacão «Nabi», tal como acontece quase todos os anos ali bem perto, em Cuba, onde os furacões levam regularmente o governo cubano a evacuar às vezes cidades inteiras e onde nunca, mas nunca se registou uma catástrofe em perdas de vidas humanas, apesar de se estar numa ilha na rota dos furacões e das tempestades tropicais.
Todavia, não é apenas a inacreditável incompetência das autoridades dos EUA que explica a tragédia de Nova Orleães: apesar dela, houve uma evacuação atempada de parte da população – exactamente a que tinha automóveis e meios financeiros para sair da cidade. A que ficou ao completo abandono foi a população pobre e sem meios que, na cidade de Nova Orleães, é notoriamente negra e, é claro, toda das classes trabalhadoras.
Foi essa gente que o governo de Bush e C.ª desprezou sobranceiramente e depois decidiu «disciplinar» a tiro.
Essa gente conta-se aos muitos milhões nos EUA e constitui um imenso e crescente «terceiro mundo» contido, pela força, às portas da imensa riqueza e sofisticação norte-americanas.
O que o furacão «Katrina» fez foi expor, brutalmente, aos olhos dos EUA e do mundo, tanto esse «terceiro mundo» escondido e ignorado, como o desprezo que tem, por ele, quem manda no país.


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