Devolução
Foi sobretudo no «Euronews», mas também noutros canais, que vi as primeiras imagens de grandes tumultos desencadeados por israelitas (fundamentalistas, ortodoxos e de extrema-direita, segundo a locução) apelando à resistência contra a retirada de colonatos que Israel em tempos fez instalar na Faixa de Gaza ocupada militarmente. Esforçando-me por não ser sensível a aspectos que me são especialmente antipáticos, género «fardas» negras e toucados a condizer que muito me lembra as caricaturas de jesuítas que Leal da Câmara fez para ilustrar «A Velhice do Padre Eterno», procurei compreender a revolta de colonos forçados agora a abandonar lugares onde muito terão trabalhado, onde talvez tenham nascido, a que tinham o amor que resulta do cruzamento do sentido de posse com as esperanças investidas. Entretanto, e porventura para garantir a equidade da tele-informação prestada, surgiram no ecrã do televisor imagens de forças paramilitares palestinianas a treinarem-se para a eventual necessidade de intervenção, e bem se pode dizer que não tinham nenhum ar pacífico, bem pelo contrário. É claro que ninguém terá ilusões quanto ao poder de combate da polícia ou das facções paramilitares palestinianas em confronto com a força de Israel: suponho ser qualquer coisa comparável com o desequilíbrio entre a cavalaria polaca e as divisões «Panzer» de Hitler em Setembro de 39. Mas, enfim, com imagens de um e de outro lado fica composto o ramalhete informativo e ficam guardadas as conveniências. Quando não fica apenas garantido a sugestão de um equilíbrio ilusório, isto é, mentiroso. Tudo bem.
Porque nunca é tarde
Esforcei-me, pois, para sentir alguma solidariedade com o sentimento de esbulho sofrido que muita ou alguma daquela gente estaria a experimentar, e bem posso dizer que o consegui sem esforço. Não fui, porém, longe de mais por esse caminho que logo me pareceu perigoso. É que nunca deixei de me dar conta de não haver ali nenhuma paridade, ao contrário do que certas imagens podem sugerir. Foi aí que me lembrei uma vez mais de que, em sentido inverso do que é comum citar-se, «uma imagem pode mentir mais que mil palavras», verdade muito ignorada mas fundamental que aprendi com José Rebelo numa das poucas vezes que ele esteve num estúdio de televisão. A generalidade dos que eu estava a ver protestando contra a devolução aos palestinianos de alguns pedaços de terreno afinal relativamente minúsculos estariam decerto sinceramente indignados, muitos deles estariam a sentir-se brutalmente espoliados de qualquer coisa que era seu, mas estavam irremediavelmente enganados. É que a devolução era apenas a de pequeninas áreas de um todo que há alguns anos foi roubado aos palestinianos de uma forma incomparavelmente mais brutal e, então, sem qualquer apoio às vítimas da brutalização. Dir-se-á talvez que não foram exactamente aqueles que roubaram e brutalizaram, que depois o produto do roubo foi entregue de forma «legal» a quem o fecundou e multiplicou com o seu trabalho. Mas a mínima boa-fé impede esquecer que as vítimas não deixaram nunca de ser vítimas, que às primeiras se sucederam outras e outras, porque a desgraça se transmite de pais para filhos bem mais facilmente que a sorte. E que, para lá de imposições de ordem política resultantes da necessidade de uma pacificação mínima, nunca é tarde para repor a justiça, mesmo só em escala mínima, onde ela um dia foi espezinhada.
Em 1945, antes ainda da criação do Estado de Israel, Arthur Koestler, escritor sionista de origem judaico-húngara, escreveu um livro, «Thieves in the Night», traduzido no Brasil com o título de «Ladrões nas Trevas», em que apoiava a infiltração judaica na Palestina. O livro, que quando li me pareceu excelente, era introduzido por uma citação da Segunda Epístola de S. Pedro que integra o Novo Testamento: «Virá, pois, como ladrão nas trevas, o dia do Senhor» (II Pedro, 3,10). De então para cá tornou-se-me evidente, e é-o hoje mais que nunca, que a epígrafe escolhida por Koestler deve ser entendida de uma forma bem mais literal que a pretendida pelo escritor: a ocupação de terras palestinianas pelos israelitas, quer sob a forma semiclandestina anterior a 48 quer mediante a brutalização do ferro-e-fogo, foi obra de ladrões. E não é excessivo, longe disso, que mesmo muito mais tarde uma pequena devolução do bem roubado seja feita. Mesmo com os inevitáveis prejuízos e indignações de quem não roubou directamente mas recebeu o produto do roubo. Acontece agora na Palestina. Aconteceu há anos noutros lugares do mundo, e então nunca o essencial foi totalmente entendido.
Porque nunca é tarde
Esforcei-me, pois, para sentir alguma solidariedade com o sentimento de esbulho sofrido que muita ou alguma daquela gente estaria a experimentar, e bem posso dizer que o consegui sem esforço. Não fui, porém, longe de mais por esse caminho que logo me pareceu perigoso. É que nunca deixei de me dar conta de não haver ali nenhuma paridade, ao contrário do que certas imagens podem sugerir. Foi aí que me lembrei uma vez mais de que, em sentido inverso do que é comum citar-se, «uma imagem pode mentir mais que mil palavras», verdade muito ignorada mas fundamental que aprendi com José Rebelo numa das poucas vezes que ele esteve num estúdio de televisão. A generalidade dos que eu estava a ver protestando contra a devolução aos palestinianos de alguns pedaços de terreno afinal relativamente minúsculos estariam decerto sinceramente indignados, muitos deles estariam a sentir-se brutalmente espoliados de qualquer coisa que era seu, mas estavam irremediavelmente enganados. É que a devolução era apenas a de pequeninas áreas de um todo que há alguns anos foi roubado aos palestinianos de uma forma incomparavelmente mais brutal e, então, sem qualquer apoio às vítimas da brutalização. Dir-se-á talvez que não foram exactamente aqueles que roubaram e brutalizaram, que depois o produto do roubo foi entregue de forma «legal» a quem o fecundou e multiplicou com o seu trabalho. Mas a mínima boa-fé impede esquecer que as vítimas não deixaram nunca de ser vítimas, que às primeiras se sucederam outras e outras, porque a desgraça se transmite de pais para filhos bem mais facilmente que a sorte. E que, para lá de imposições de ordem política resultantes da necessidade de uma pacificação mínima, nunca é tarde para repor a justiça, mesmo só em escala mínima, onde ela um dia foi espezinhada.
Em 1945, antes ainda da criação do Estado de Israel, Arthur Koestler, escritor sionista de origem judaico-húngara, escreveu um livro, «Thieves in the Night», traduzido no Brasil com o título de «Ladrões nas Trevas», em que apoiava a infiltração judaica na Palestina. O livro, que quando li me pareceu excelente, era introduzido por uma citação da Segunda Epístola de S. Pedro que integra o Novo Testamento: «Virá, pois, como ladrão nas trevas, o dia do Senhor» (II Pedro, 3,10). De então para cá tornou-se-me evidente, e é-o hoje mais que nunca, que a epígrafe escolhida por Koestler deve ser entendida de uma forma bem mais literal que a pretendida pelo escritor: a ocupação de terras palestinianas pelos israelitas, quer sob a forma semiclandestina anterior a 48 quer mediante a brutalização do ferro-e-fogo, foi obra de ladrões. E não é excessivo, longe disso, que mesmo muito mais tarde uma pequena devolução do bem roubado seja feita. Mesmo com os inevitáveis prejuízos e indignações de quem não roubou directamente mas recebeu o produto do roubo. Acontece agora na Palestina. Aconteceu há anos noutros lugares do mundo, e então nunca o essencial foi totalmente entendido.