A segunda infâmia
No passado dia 6 completaram-se 60 anos sobre a madrugada em que um B-29 da Força Aérea norte-americana lançou sobre Hiroshima, cidade japonesa sem interesse militar, a primeira bomba atómica da História. A generalidade dos telenoticiários assinalou a trágica efeméride com palavras não exageradamente dramáticas, imagens breves da cidade destruída e de cerimónias evocativas agora realizadas. Sempre, porém, com qualquer pequenina inexactidão capaz de falsificar, ao menos um poucochinho, a integral verdade histórica. Por exemplo: quanto ao número de mortos instantaneamente provocados pelo ataque, agora pelos vistos fixado oficiosamente em 140 mil. Outro exemplo: quanto à suposta necessidade do bombardeamento para pôr fim à guerra na Ásia. Outro exemplo ainda, este mais discreto e por isso talvez mais eficaz para uma persuasão «indolor»: a fórmula encontrada pela TVI ao informar que aquela havia sido «a primeira vez em que a humanidade usou a energia atómica como arma de guerra». A questão, fundamentalíssima questão, é que não foi, não, «a humanidade» a usar a energia atómica como arma de guerra: foram os Estados Unidos da América, que não são exactamente «a humanidade». Mas talvez a mais significativa aldrabice acerca do crime de Hiroshima foi a que, uns dias antes, mereceu largo tempo num outro canal: ali surgiu um oficial norte-americano a sustentar a pretensa justificação de que tratou de salvar milhares de vidas norte-americanas e japonesas que se perderiam se o fim do conflito não fosse imediatamente conseguido com o terror imposto pelos dois bombardeamentos atómicos. Trata-se de uma péssima tese que há muito tempo foi arrasada por testemunhos vários de gente de insuspeita idoneidade. Não obstante, ainda aparecem vozes a tentarem cobrir a infâmia cometida há 60 anos com a infâmia que é a reedição de um argumentário averiguadamente mentiroso. A verdade é que há gente assim. Quando se trata de um oficial dos Estados Unidos que o faça quer por convicção quer por dever de ofício, é compreensível e até menos chocante, embora sempre seja obviamente reprovável. Quando, porém, os mesmos argumentos são reapresentados por uma criatura que em princípio não tem nada a ver com a Grande América de Truman e Bush, o fenómeno é de maior espanto e, sejamos claros e sinceros, também de maior repugnância.
No princípio era a vaidade
Foi o que aconteceu no passado dia 7, domingo, em página de um jornal diário dito de referência. (Bem sei que esta coluna tem por vocação e vínculo o comentário aos conteúdos da TV, mas não é culpa sua se esses conteúdos, pelo seu relevo, transbordam para outros media.) Foi o caso que no tal jornal diário, numa das suas páginas interiores, surgiu um artigo notável de justeza e fundamentação que sob o título de «Hiroshima e Memória» confirma solidamente dois aspectos essenciais: a inutilidade militar dos massacres atómicos em Hiroshima e Nagazaki e o objectivo (falhado) de advertência à URSS. Porém, no mesmíssimo número do mesmo jornal, lá mais para o fim, em local habitualmente preenchido por uma prosa a tresandar a presunção desvairada e a mais qualquer coisa, o titular daquela banca aplica-se a reeditar, aliás em fórmula obsoleta e pobre, a tese trumaniana da economia de milhões (!) de vidas americanas. É bem sabido que o autor, coitado, é um desgraçado a quem é devida alguma comiseração, pois é desgraça, e das grandes, chegar-se à vista do fim da vida e acreditar-se que se passou pelo mundo sem que este, ingrato, tenha dado por tanta genialidade quanta a que habita o sujeito. Ainda assim, porém, o indivíduo repugna. É certo que repugna todas ou quase todas as semanas, embora numas mais que noutras, mas quando a busca frenética do destaque pela originalidade desemboca na cumplicidade com o mais nojento crime da História, não há nada a fazer.
Ora, regressando agora à TV, que é sempre o assunto destas colunas mas não assunto sacralizadamente estanque, confirmemos que lá se viu um coronel USA a repetir a velha patranha oficial de que o massacre cobarde de centenas de milhares de japoneses civis teria decorrido na nobre intenção de poupar vidas de militares norte-americanos e também japoneses. É mentira, está provado que o é, mas não dei por que na TV alguém tenha vindo repor a verdade com a indispensável nitidez. Digo que não vi, não garanto que não tenha acontecido. Mas duvido. E a dúvida inquieta-me. Porque este não é um caso menor, longe disso. Porque uma das poucas coisas que ainda podemos fazer pelos mortos de Hiroshima é não mentir acerca da infâmia que os matou. Isto é: é não acrescentar à primeira, gigantesca infâmia, uma segunda infâmia, relativamente minúscula mas insuportavelmente reles.
No princípio era a vaidade
Foi o que aconteceu no passado dia 7, domingo, em página de um jornal diário dito de referência. (Bem sei que esta coluna tem por vocação e vínculo o comentário aos conteúdos da TV, mas não é culpa sua se esses conteúdos, pelo seu relevo, transbordam para outros media.) Foi o caso que no tal jornal diário, numa das suas páginas interiores, surgiu um artigo notável de justeza e fundamentação que sob o título de «Hiroshima e Memória» confirma solidamente dois aspectos essenciais: a inutilidade militar dos massacres atómicos em Hiroshima e Nagazaki e o objectivo (falhado) de advertência à URSS. Porém, no mesmíssimo número do mesmo jornal, lá mais para o fim, em local habitualmente preenchido por uma prosa a tresandar a presunção desvairada e a mais qualquer coisa, o titular daquela banca aplica-se a reeditar, aliás em fórmula obsoleta e pobre, a tese trumaniana da economia de milhões (!) de vidas americanas. É bem sabido que o autor, coitado, é um desgraçado a quem é devida alguma comiseração, pois é desgraça, e das grandes, chegar-se à vista do fim da vida e acreditar-se que se passou pelo mundo sem que este, ingrato, tenha dado por tanta genialidade quanta a que habita o sujeito. Ainda assim, porém, o indivíduo repugna. É certo que repugna todas ou quase todas as semanas, embora numas mais que noutras, mas quando a busca frenética do destaque pela originalidade desemboca na cumplicidade com o mais nojento crime da História, não há nada a fazer.
Ora, regressando agora à TV, que é sempre o assunto destas colunas mas não assunto sacralizadamente estanque, confirmemos que lá se viu um coronel USA a repetir a velha patranha oficial de que o massacre cobarde de centenas de milhares de japoneses civis teria decorrido na nobre intenção de poupar vidas de militares norte-americanos e também japoneses. É mentira, está provado que o é, mas não dei por que na TV alguém tenha vindo repor a verdade com a indispensável nitidez. Digo que não vi, não garanto que não tenha acontecido. Mas duvido. E a dúvida inquieta-me. Porque este não é um caso menor, longe disso. Porque uma das poucas coisas que ainda podemos fazer pelos mortos de Hiroshima é não mentir acerca da infâmia que os matou. Isto é: é não acrescentar à primeira, gigantesca infâmia, uma segunda infâmia, relativamente minúscula mas insuportavelmente reles.