Moscovo, 1973

Francisco Silva
Em 1973, a Universíada realizou-se em Moscovo. Foi isto logo no ano seguinte ao ano dos Jogos Olímpicos de Munique, Jogos que ficaram célebres por más razões. Neles morreram vários elementos da delegação de Israel em consequência de um atentado terrorista na vila olímpica.
Ao chegarmos a Moscovo, e quando a nossa delegação já vinha no autocarro que a transportava do aeroporto para a cidade, o attaché soviético destacado pela organização para nos acompanhar, num português bastante razoável, ia-nos avisando que, sem complexos, sem receios de que os acusassem de nos estarem a controlar com forças de segurança, a delegação portuguesa e a delegação israelita iriam ser instaladas numa zona isolada do imenso edifício da Universidade Lomonossov.
O colossal edifício da Universidade Lomonossov - um dos edifícios, já não lembro quantos eram, serão 5, 6 ?, cujas silhuetas, todas semelhantes, são inconfundíveis marcas da cidade; de entre os outros destes edifícios, lembro-me do Hotel Ucrânia, que me lembro de ter revisto doutras visitas a Moscovo, e lembro-me também do edifício do Ministério dos Negócios Estrangeiros, se não estou em erro -, o edifício onde ficámos instalados situava-se num alto sobranceiro ao rio que passava lá em baixo. Do edifício também se via o Estádio Lenine, lá em baixo, no vale.
Estamos a falar do Estádio onde iriam ter lugar as competições de Atletismo e onde iriam decorrer as cerimónias de abertura e de encerramento da Universíada. O Estádio com o nome de Lenine - ele mesmo - onde como porta-bandeira da delegação portuguesa senti uma intensa emoção. Belíssima e, ao mesmo tempo, estranhíssima. Ora vejam lá: na altura estava eu a cumprir o serviço militar, estava-se em plena época das guerras coloniais, o 25 de Abril já estava a ficar próximo, e eu um oficial miliciano empunhando a bandeira portuguesa a atravessar o Estádio Lenine, com licença das autoridades militares, após consulta à PIDE / DGS.

Tudo acabou em bem

Bem, espero não estar enganado no que descrevi, de não o ter sonhado, mas não tenho encontrado nenhuma fonte que me possa ajudar a tirar dúvidas. Até ao Orlando Azinhais, que esteve presente em Moscovo, como presidente de júri internacional para a esgrima da Universíada, senhor de uma memória monumental para estas coisas, que morreu recentemente, já não posso fazer uma consulta. Não me lembro de nenhum outro que tenha estado aí, para além de Augusto de Athaíde, membro do governo de Marcelo Caetano. Mas já há tempos que andava para escrever sobre este episódio.
Ainda se me colocou a questão se a tal honra que tive de ser porta-bandeira da nossa delegação não teria sido antes na Universíada de Turim em 1970, quando nos avisaram - ou me avisaram? - para termos cuidado durante o desfile inaugural porque havia informações de que poderia haver qualquer manifestação contra nós, por solidariedade para com os povos em luta nas colónias portuguesas. Desgraçada memória que nos coloca tais dúvidas! Mas os pormenores memoriais da emoção sentida no Estádio Lenine acabaram por me convencer de que não devo estar a laborar em erro ao atribuir esta situação à Universíada de Moscovo.
Centremo-nos em 1973, em Moscovo e no edifício da Universidade Lomonossov – este, uma «cidade» não tão pequena assim é o que parece, contida no interior do edifício, dentro da cidade de Moscovo, à maneira das matrioschkas! E tal como o nosso attaché, Vassil de seu nome, oriundo e ferrenho de Leninegrado, como insistia em referir com orgulho, estudante de português no Instituto de Línguas Estrangeiras em Moscovo, nos tinha avisado, ficámos isolados num dos torreões - onde ficámos, os israelitas e nós, claro. Os outros milhares de atletas ficaram instalados no resto do edifício. Eles não podiam entrar na nossa zona fortemente guardada nos acessos, e no seu interior. Nós e os israelitas, à nossa responsabilidade, claro, andávamos por onde quiséssemos. O resto do edifício estava guardado, em todos aqueles labirintos por onde me perdia com frequência e levava sempre um tempo desusado, às voltas, para conseguir efectuar trajectos que, sem erros, sem me perder, se fariam num instantinho. E só percebia que estava a chegar aos nossos alojamentos quando me pediam a identificação! Isto durante uma dúzia de dias.
E nada aconteceu, tudo acabando em bem. Se era a costumeira história da casa roubada, trancas à porta, não sei. Se as coisas não tinham que acontecer, não se sabe sequer se é uma afirmação justa. Veio o 25 de Abril e deixámos de fazer parte da tal lista.


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