O Gonçalo, a tia e o namorado
À Luz, companheira de tantas destas histórias
Era um dia do princípio do verão, daqui há dez anos. Alguém nos tinha dito que, naquela zona do sotavento algarvio, havia um tal «Costa» em Cacela onde se comia bom peixe grelhado.
Lá encontrámos o sítio, cuja parede lindava com a areia da praia e onde o mar chegaria de vez em quando. Uma esplanada de cimento coberta por um enredado de caniços, que davam sombra e alguma frescura. Ao lado, a areia, as pessoas e a água. No ar um toque salgado do mar.
Pedimos o peixe, uns jarros de branco algarvio, bastante subido de álcool, o que nos brancos é muito perigoso, uma vez que os 13 ou 14 graus não se notam na boca porque o vinho está muito frio. Mas o álcool está lá e a cabeça ou o GNR tomarão nota da situação.
Esperamos, porque isto do peixe é questão de três coisas: frescura do animal, brasas cor de inferno com total ausência de chama e tempo. O produto final deve ter a pele estaladiça, sem estar queimada, ter a carne assada mas com sumo de mar e, ao servir, soltar-se bem da espinha onde se deverão ver ainda uns laivos vermelhos.
Será pedir muito, mas o do Costa naquele dia estava quase assim.
Enquanto esperávamos, ia entrando gente e, entre eles, uma rapariguinha bem vestida, com uma carinha virginal (no sentido dos escritores do romantismo), um rapazinho dos seus vinte anos, camisa branca, blue jeans, sapatos pretos, bem engraxados e barba milimetricamente bem feita. Depois vinha um rapazito irrequieto, decidido e claramente feliz pela situação. Tinham entrado, como já perceberam, a tia, o namorado e o Gonçalo.
Sentaram-se ao nosso lado. Percebia-se que as famílias estavam contentes pelo namoro, uma vez que tinham autorizado o almoço mas ainda era preciso um pau-de-cabeleira: o Gonçalo. Supunha-se que vigiava mas não se sabe o quê. O que era evidente era que o Gonçalo estava contente com a importância que tinha naquele almoço. E, por isso, fazia perguntas, interrompia, dava opiniões. Ele pensava que era um almoço a três, sem perceber que era uma situação de dois mais um.
Cada vez que a tia tentava, olhos nos olhos, falar com o namorado, sobre qualquer coisa («Peixe? Aqui parece que as lulas são muito boas. Não sei, talvez uns robalinhos…»), logo saltava o rapazola: «Ó tia! Eu quero carne», uma e outra vez. Eles bem baixavam a voz e falavam quase sem se ouvir, mas o Gonçalo atacava «Ó tia! A que horas vão comer as pessoas que estão na praia?» Desesperada, a tia já só conseguia dizer: «Cala-te, Gonçalo», e olhava de lado para o namorado, não fosse o moço ficar farto da situação e, o que era mais grave, dela própria.
Conseguiram pedir e a espera que eles tinham imaginado como um longo diálogo de olhares, um silêncio esclarecedor daquele amor ainda crescente e, quem sabe, algum toque de mãos, casual, ao ir buscar o copo da água os dois ao mesmo tempo. Casual, repito. Mas o Gonçalo interrompia, e bem alto, protestava «Ó tia, aqui demoram tanto tempo! «Cala-te, Gonçalo.»
Nós, os que estávamos perto deles, percebíamos a situação, percebíamos tudo, principalmente a aflição crescente da tia, que tinha a difícil tarefa de conciliar a situação sonhada e o Gonçalo. Mas também é verdade que o Gonçalinho já nos tinha conquistado.
O bitoque do Gonçalo provocou-lhe uma evidente alegria. Começaram a comer. O Gonçalo calou-se e comia com gosto. Finalmente a paz. A tal situação que previa futuros azuis e brilhantes, amor sem fim, toda a beleza e nenhum problema, tem começos e os dois trataram deles: «Com o peixe grelhado gostas mais de batatas cozidas ou salada? Talvez um copo de vinho soubesse melhor do que esta cola, não achas?»
A tradução desta conversa era «Quando vivermos juntos vamos comer, vamos beber e vamos amar-nos como duas pessoas nunca se amaram. Quanto tempo ainda falta?»
Mas, o que se ouviu, no meio de um silêncio enorme, como que inventado por um encenador de teatro, foi a voz alta, enfática e entusiasmada do Gonçalo: «Ó tia, o bitoque está bom com’á pooorrra!»
A tia gritou «Gonçalo!!!!!», o Gonçalo não percebeu o ralhanço, estava só a tentar ser simpático, a gente à volta ria-se e o empregado, que ia a passar, perguntou inocentinhamente «É preciso mais alguma coisa?» A tia, lívida, só começou a recuperar um pouco de cor quando se atreveu a olhar para o namorado e viu um leve sorriso e um ar tão calmo que só podia querer dizer: «Gosto de ti.»
Faltou o beijo pertinente, com o sol alaranjado a desaparecer no mar, mas devo lembrar aos leitores que era hora de almoço, que só tínhamos ido comer peixe e que Cacela, felizmente, não é Hollywood.
Mesmo assim, quero declarar solenemente: «Gonçalo, serás sempre o meu herói.»
Era um dia do princípio do verão, daqui há dez anos. Alguém nos tinha dito que, naquela zona do sotavento algarvio, havia um tal «Costa» em Cacela onde se comia bom peixe grelhado.
Lá encontrámos o sítio, cuja parede lindava com a areia da praia e onde o mar chegaria de vez em quando. Uma esplanada de cimento coberta por um enredado de caniços, que davam sombra e alguma frescura. Ao lado, a areia, as pessoas e a água. No ar um toque salgado do mar.
Pedimos o peixe, uns jarros de branco algarvio, bastante subido de álcool, o que nos brancos é muito perigoso, uma vez que os 13 ou 14 graus não se notam na boca porque o vinho está muito frio. Mas o álcool está lá e a cabeça ou o GNR tomarão nota da situação.
Esperamos, porque isto do peixe é questão de três coisas: frescura do animal, brasas cor de inferno com total ausência de chama e tempo. O produto final deve ter a pele estaladiça, sem estar queimada, ter a carne assada mas com sumo de mar e, ao servir, soltar-se bem da espinha onde se deverão ver ainda uns laivos vermelhos.
Será pedir muito, mas o do Costa naquele dia estava quase assim.
Enquanto esperávamos, ia entrando gente e, entre eles, uma rapariguinha bem vestida, com uma carinha virginal (no sentido dos escritores do romantismo), um rapazinho dos seus vinte anos, camisa branca, blue jeans, sapatos pretos, bem engraxados e barba milimetricamente bem feita. Depois vinha um rapazito irrequieto, decidido e claramente feliz pela situação. Tinham entrado, como já perceberam, a tia, o namorado e o Gonçalo.
Sentaram-se ao nosso lado. Percebia-se que as famílias estavam contentes pelo namoro, uma vez que tinham autorizado o almoço mas ainda era preciso um pau-de-cabeleira: o Gonçalo. Supunha-se que vigiava mas não se sabe o quê. O que era evidente era que o Gonçalo estava contente com a importância que tinha naquele almoço. E, por isso, fazia perguntas, interrompia, dava opiniões. Ele pensava que era um almoço a três, sem perceber que era uma situação de dois mais um.
Cada vez que a tia tentava, olhos nos olhos, falar com o namorado, sobre qualquer coisa («Peixe? Aqui parece que as lulas são muito boas. Não sei, talvez uns robalinhos…»), logo saltava o rapazola: «Ó tia! Eu quero carne», uma e outra vez. Eles bem baixavam a voz e falavam quase sem se ouvir, mas o Gonçalo atacava «Ó tia! A que horas vão comer as pessoas que estão na praia?» Desesperada, a tia já só conseguia dizer: «Cala-te, Gonçalo», e olhava de lado para o namorado, não fosse o moço ficar farto da situação e, o que era mais grave, dela própria.
Conseguiram pedir e a espera que eles tinham imaginado como um longo diálogo de olhares, um silêncio esclarecedor daquele amor ainda crescente e, quem sabe, algum toque de mãos, casual, ao ir buscar o copo da água os dois ao mesmo tempo. Casual, repito. Mas o Gonçalo interrompia, e bem alto, protestava «Ó tia, aqui demoram tanto tempo! «Cala-te, Gonçalo.»
Nós, os que estávamos perto deles, percebíamos a situação, percebíamos tudo, principalmente a aflição crescente da tia, que tinha a difícil tarefa de conciliar a situação sonhada e o Gonçalo. Mas também é verdade que o Gonçalinho já nos tinha conquistado.
O bitoque do Gonçalo provocou-lhe uma evidente alegria. Começaram a comer. O Gonçalo calou-se e comia com gosto. Finalmente a paz. A tal situação que previa futuros azuis e brilhantes, amor sem fim, toda a beleza e nenhum problema, tem começos e os dois trataram deles: «Com o peixe grelhado gostas mais de batatas cozidas ou salada? Talvez um copo de vinho soubesse melhor do que esta cola, não achas?»
A tradução desta conversa era «Quando vivermos juntos vamos comer, vamos beber e vamos amar-nos como duas pessoas nunca se amaram. Quanto tempo ainda falta?»
Mas, o que se ouviu, no meio de um silêncio enorme, como que inventado por um encenador de teatro, foi a voz alta, enfática e entusiasmada do Gonçalo: «Ó tia, o bitoque está bom com’á pooorrra!»
A tia gritou «Gonçalo!!!!!», o Gonçalo não percebeu o ralhanço, estava só a tentar ser simpático, a gente à volta ria-se e o empregado, que ia a passar, perguntou inocentinhamente «É preciso mais alguma coisa?» A tia, lívida, só começou a recuperar um pouco de cor quando se atreveu a olhar para o namorado e viu um leve sorriso e um ar tão calmo que só podia querer dizer: «Gosto de ti.»
Faltou o beijo pertinente, com o sol alaranjado a desaparecer no mar, mas devo lembrar aos leitores que era hora de almoço, que só tínhamos ido comer peixe e que Cacela, felizmente, não é Hollywood.
Mesmo assim, quero declarar solenemente: «Gonçalo, serás sempre o meu herói.»