O melhor poeta do campeonato

Isabel Araújo Branco
O Benfica ganhou o Campeonato Nacional de Futebol. Uns estão delirantes, os outros nem por isso. E não estão porque são do Sporting ou do Porto ou têm demasiado juízo para não ligarem a estas coisas da bola, dos clubes e de comemorações... Mas são poucos, muito poucos...
Comemorar um golo é bom, ainda mais a vitória de um jogo, de um campeonato ou de uma taça. É sempre uma alegria, mesmo que estejamos a perder. Mesmo que não haja hipótese de ganhar. Mesmo que não nos esqueçamos que os clubes hoje são empresas que têm como principal objectivo facturar, que os novos estádios construídos para o Euro 2004 não têm espaços para a prática de outros desportos e que, à excepção do futebol, todas as modalidades são desprezadas em Portugal. Mesmo assim, um golo é sempre um momento de alegria, um coração aos saltos, um alívio momentâneo, um instante irrepetível.
Um momento destes – um, dois, mil... – não pode passar ao lado dos artistas. Dizia o poeta e realizador Pier Paolo Pasolini que «há no futebol momentos que são exclusivamente poéticos: trata-se dos momentos de golo. Cada golo é sempre uma invenção, uma subversão do código: cada golo é fatalidade, fulguração, espanto, irreversibilidade. Precisamente como a palavra poética. O melhor marcador de um campeonato é sempre o melhor poeta do ano. Neste momento, Savoldi é o melhor poeta. O futebol que exprime mais golos é o mais poético.» Liedson, o melhor poeta de 2004/5, com 24 belos poemas, mais nove do que Simão Sabrosa e João Tomás... Há algo mais poético do que esta ideia?

É Garrincha, é Eusébio

O barulho da festa aumenta na rua e surge outro texto sobre o futebol, agora do brasileiro Vinícius de Moraes, «O Anjo de Pernas Tortas»: «A um passe de Didi, Garrincha avança / Colado o couro aos pés, o olhar atento / Dribla um, dribla dois, depois descansa / Como a medir o lance do momento.» Ao ler estas palavras somos transportados para o estádio – um qualquer – e ficamos suspensos da técnica de Garrincha. Não se sabe que se trata do melhor extremo direito de todos os tempos? Não importa, pois encarna todos os jogadores de futebol. Temos os olhos em cima dele, que aqui significa ler as palavras projectando na nossa mente imagens de um protagonista que se está a preparar para marcar o golo. E lá vai ele a passar pelos adversários, rápido, com estilo, gracioso. E os olhos não se despregam dos versos, o mesmo é dizer do jogador. Porque aqui, graças ao poeta, um são o outro. À nossa frente estão o jogador, duas equipas, um relvado brilhante ao sol. Só não sabemos a cor das camisolas.
Há mais: «Vem-lhe o pressentimento; ele se lança / Mais rápido que o próprio pensamento, / Dribla mais um, mais dois; a bola traça / Feliz, entre seus pés – um pé de vento!» Já estamos levantados na bancada, já quase antecipamos o golo, já no peito se agita a tal alegria, colado ao medo da fustração. Será desta que marcamos? O jogador não é da nossa equipa? É, sim, porque a nossa equipa é o futebol. «Num só transporte, a multidão contrita / Em ato de morte se levanta e grita / Seu uníssono canto de esperança. // Garrincha, o anjo, escuta e atende: Gooooool! / É pura imagem: um G que chuta um O / Dentro da meta, um L. É pura dança!» É onomatopeia, é vida. Golo! Golo! Golo! É de Garrincha, é de Eusébio, é de Peyroteu, é do Águas, é de Matateu, é de Jardel, é de Gomes, é de Distéfano, é de Maradona, é de Pelé.
São todos eles anjos sem asas, mas com pés divinos, que transportam a bola e dela fazem o que querem, como uma extensão do corpo, vai para lá, passa entre estes adversários, faz ressalto ali, entra na grande baliza que está aqui à frente. Golo! É a festa do quotidiano, da vida simples, do domingo de sol, do jogo seguido pelas vozes entusiastas de quem faz os relatos na rádio, das imagens mornas na televisão à noite, dos empurrões no estádio, dos cânticos de incentivo aos jogadores em coro, das vibrações colectivas, da projecção de milhares na bola.
Na rua o ruído cresce, a festa prossegue. Vai mais um poema? «A bola não é a inimiga / como o touro, numa corrida; / e, embora seja um utensílio / caseiro e que se usa sem risco, / não é o utensílio impessoal, / sempre manso, de gesto usual: / é um utensílio semivivo, / de reações próprias como bicho / e que, como bicho, é mister / (mais que bicho, como mulher) / usar com malícia e atenção / dando aos pés astúcias de mão.» João Cabral de Melo Neto assina.


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