O 25 de Abril em Luanda
A 29 de Abril, os portugueses progressistas de Luanda manifestam-se publicamente, em solidariedade com os acontecimentos de 25 de Abril, que levou á queda do regime fascista em Portugal. A partir do meio da manhã do dia 25, altura em que se começou a ouvir de que tinha havido qualquer coisa em Lisboa, o clima de expectativa na capital da colónia foi aumentando á medida em que o tempo passava, e as informações iam sendo mais precisas.
Em Luanda, com relevo para a livraria Lello, ali mesmo, na baixa citadina, o habitual grupo de «analistas políticos» ia aumentando com o passar do tempo, e face ás notícias que a conta-gotas iam chegando, havia unanimidade de que era preciso fazer alguma coisa. - Mas o quê ? questionavam-se os mais impacientes. - Se a PID.E. continua lá em cima, que vamos nós fazer? os gajos passeiam-se pela cidade como se nada se tivesse passado em Portugal... é uma vergonha! adiantava outro. - É de facto necessário fazer qualquer coisa... até porque andam para aí uns gajos a movimentarem-se, sabe-se lá com que objectivo! Não se esqueçam do que se passou na Rodésia, sentenciava um «mais velho». Após acalorada discussão chegou-se finalmente a um consenso.
Aprazou-se para o dia 29 á tarde, agrupar o máximo de gente possível para se levar a efeito uma manifestação de apoio á Junta de Salvação Nacional. - É o mínimo que politicamente temos obrigação de fazer, até porque andam para aí uns doutores a organizar algo parecido que não me parece ser coisa boa, avisava o «mais velho» da casa. Alguém mais afoito foi adiantando: - Vamos mas é exigir já a independência de Angola! O «M» precisa de uma palavra de encorajamento!
- Calma! muita calma! cuidado, que os gajos (pides) ainda andam por aí - rematava outro mais experiente nestas coisas da política. Acordou-se em avançar-se com uma «concentração», para ver o que dava. Era como que um balão de ensaio... uma experiência.
Entretanto nesse mesmo dia à tardinha, depois dos «funcionários» começarem a abandonar os seus empregos, umas centenas de europeus (não verdadeiramente gente dos meios oposicionistas), escolheu na baixa luandense o largo D. Afonso Henriques (adjacente á Casa Americana e cinema Nacional) para, à sua maneira, celebrarem a queda do regime (seria?), sendo notório em algumas das intervenções, a velada intenção de perspectivarem «uma Angola para brancos». Esta situação, embora esperada, alarmou aqueles que, desejosos de se libertarem do fascismo, desejavam igualmente o reconhecimento dos verdadeiros representantes do povo angolano. Com gente daquela não se ia a lado nenhum...
Os «nossos» que foram espreitar, para ver o que eventualmente pudesse estar por detrás «daquilo», ficaram de acordo com o que ouviram, conscientes do longo caminho que havia a percorrer, mas a realidade colonial era aquela... A presença de alguns conhecidos «oposicionistas», (daqueles que por vezes eram vistos no «Baleizão» a chupar canecas de cerveja com o Reis Teixeira e outros «artistas» do «Miradouro»), não davam quaisquer garantias políticas, a quem pautava a sua conduta pelo ideário dos ancestrais lutadores pela emancipação do povo angolano. Havia que marcar enérgica e urgentemente uma posição, fazer algo de diferente, talvez uma manifestação autêntica, já que intervir ali não tinha qualquer efeito prático, para além de poder trazer problemas... Com gente daquela, nunca se sabia o que poderia acontecer. A hora era de decisões rápidas a eficazes.
Arregimentou-se ali mesmo, no meio daquela concentração de colonos, para além dos elementos conhecidos como «nossos», as pessoas que se entendia estarem ali ou por curiosidade ou com outro objectivo, que não o dos oradores que no sopé da estátua do D. Afonso, se iam revezando, debitando inflamadas palavras e frases feitas, em tudo parecidas com as que ouvíamos na rádio, a dirigentes coloniais de outras paragens. Com ambiente, não foi difícil o recrutamento, arranjando-se umas 30 pessoas, gente que nestas coisas de simpatia pela emancipação do povo angolano, era sobejamente conhecida.
O grupo era constituído maioritariamente por negros, empregados da Fazenda, das Obras Públicas, dos Correios, do Banco de Angola, alguns conhecidos praticantes de desporto nos clubes de Luanda, com alguns outros curiosos á mistura.
Foi-se passando a palavra: - Vamos lá a cima, ao largo do palácio do Governo! Dois conhecidos dirigentes desportivos do Futebol Clube de Luanda que empunhavam um cartaz de pano com as palavras «SAUDAMOS A JUNTA DE SALVAÇÃO NACIONAL», foram de imediato «mobilizados». Acertaram-se pormenores. - Dentro de meia hora lá em cima, no palácio! - foi a palavra de ordem.
Um conhecido desportista assumiu a responsabilidade de arranjar meios para dar á «manifestação» no palácio do Governo um aspecto organizado, com meios para um discurso mais «directo», de acordo com os anseios do povo. - Preciso de deitar cá para fora «algumas coisas» que trago atravessadas na garganta há muitos anos!... assumia o desportista.
Sem perda de tempo, o nosso homem corre rapidamente ao Estádio dos Coqueiros onde consegue que o «Tio Rato» (Elvino Tadeu Bastos, «velho» benguelense), depois de. saber de tão «nobre missão», lhe faculta, sem pestanejar, o megafone da Associação de Atletismo, de que era dirigente. Na posse de tão importante instrumento, foi só respirar fundo e vencer a íngreme barroca que fica sobranceira ao velho Estádio. Chegado ao local, deparou-se ao desportista umas cinco centenas de pessoas, brancos e negros, que haviam já dado início ao «comício», os quais, para sua surpresa, escutavam ordeiramente as palavras do senhor Encarregado do Governo, tenente-coronel Soares Carneiro, que estava a terminar a sua intervenção e, como que em tom de despedida, como bom português, pôs toda aquela gente a cantar o hino português, num apoteótico remate final (era o chamado comício á moda do antigamente). - Porra!, isto não é nada assim - reage de imediato o desportista... E, vendo a inutilidade da manifestação, que afinal não era melhor nem pior do que a que se realizara no largo Afonso Henriques, assume a responsabilidade de dar a volta á situação.
De megafone em punho, chama a atenção de toda aquela gente e, dirigindo a sua intervenção para os oficiais que estavam na varanda do palácio, fronteira ao largo, «obriga» a que o «senhor Encarregado» escutasse aquilo que certamente não desejaria ouvir.
- Atenção!... Atenção!... nós estamos aqui, não para dar vivas a Portugal, mas para exigir a libertação de todos os presos políticos em Angola!...nós estamos aqui para que as autoridades portuguesas entrem imediatamente em diálogo com os representantes do povo angolano, para um cessar-fogo imediato!...nós estamos aqui para pedir a imediata extinção da PIDE! (vamos á PIDE!, vamos lá abaixo á PIDE! - gritaram imediatamente alguns europeus colocados na frente da manifestação). O desportista, não se desconserta. - Ninguém vai á PIDE! avisou. - Eles ainda têm as armas! ninguém saí daqui... para morrer! E continua: - Senhor Encarregado do Governo, transmita ás autoridades da Junta de Salvação Nacional, em Lisboa, que nós estamos com «eles», mas queremos que o povo angolano seja livre a independente! (Há aplausos, vivas a Angola Livre e à Liberdade, aplausos a mais aplausos), estava dado o «recado». Os presentes abraçam-se. Há afirmações de espanto. Então tu... também? Dá cá um abraço, camarada! Ali, naquele momento, aquela «onda» era de facto a verdadeira onda da Angolanidade.
Acabava apoteoticamente o comício que todos havíamos desejado, onde foram ditas com acutilância e objectividade as palavras que de momento eram as mais necessárias. Os angolanos presentes, alguns deles desportistas, saudaram entusiasticamente as acaloradas e vibrantes palavras. Alguns dos europeus, disfarçadamente, iam-se desmobilizando, quem sabe se por não os terem deixado acabar de cantar o hino.
No rescaldo, o coronel Soares Carneiro mandou recado ao homem do megafone, para que se deslocasse ao Palácio, para dialogarem. Este, experiente, aceitou na condição de levar consigo uma boa dúzia de apoiantes. E assim aconteceu. No átrio de entrada, onde a «delegação» da manifestação foi recebida, voltou a transmitir-se ao Encarregado do Governo o que havia sido dito no Largo, com a mesma acutilância, sem tibiezas. O coronel garantiu que sim, senhor... iria transmitir a Lisboa as preocupações transmitidas. E assim, em clima de absoluta militãncia, terminou, já o sol se escondia por detrás da Fortaleza, aquela que terá sido a primeira manifestação reivindicativa, de apoio à independência de Angola.
No dia seguinte, pela manhã, o Felizberto da Lello rejubilava. Camarada!... assim é que é! O velho livreiro, comunista do antigamente, catedrático nas questões de política angolana, estava eufórico, e comentava assim as afirmações de alguns brancos despeitados pela intervenção do desportista do Atlético, no dia anterior, no largo do palácio do Governo. - Eles que vão bardatuji ! Tratem mas é de fazer as malas porque qualquer dia é capaz de ser tarde!, rematava o «mais velho», homem que em Luanda, desde início dos anos cinquenta, conseguia como que por magia, «arranjar» livros proibidos pelo regime salazarista, que eram verdadeiras janelas abertas para o campo verde da esperança no futuro, em que acreditávamos - «A Mãe», «Fontamara», «O Cavaleiro da Esperança», «Subterrâneos da Liberdade», «Assim foi temperado o aço», «Esteiros», «Quando os Lobos Uivam», «Seara de Vento» e tantos outros.
Aprazou-se para o dia 29 á tarde, agrupar o máximo de gente possível para se levar a efeito uma manifestação de apoio á Junta de Salvação Nacional. - É o mínimo que politicamente temos obrigação de fazer, até porque andam para aí uns doutores a organizar algo parecido que não me parece ser coisa boa, avisava o «mais velho» da casa. Alguém mais afoito foi adiantando: - Vamos mas é exigir já a independência de Angola! O «M» precisa de uma palavra de encorajamento!
- Calma! muita calma! cuidado, que os gajos (pides) ainda andam por aí - rematava outro mais experiente nestas coisas da política. Acordou-se em avançar-se com uma «concentração», para ver o que dava. Era como que um balão de ensaio... uma experiência.
Entretanto nesse mesmo dia à tardinha, depois dos «funcionários» começarem a abandonar os seus empregos, umas centenas de europeus (não verdadeiramente gente dos meios oposicionistas), escolheu na baixa luandense o largo D. Afonso Henriques (adjacente á Casa Americana e cinema Nacional) para, à sua maneira, celebrarem a queda do regime (seria?), sendo notório em algumas das intervenções, a velada intenção de perspectivarem «uma Angola para brancos». Esta situação, embora esperada, alarmou aqueles que, desejosos de se libertarem do fascismo, desejavam igualmente o reconhecimento dos verdadeiros representantes do povo angolano. Com gente daquela não se ia a lado nenhum...
Os «nossos» que foram espreitar, para ver o que eventualmente pudesse estar por detrás «daquilo», ficaram de acordo com o que ouviram, conscientes do longo caminho que havia a percorrer, mas a realidade colonial era aquela... A presença de alguns conhecidos «oposicionistas», (daqueles que por vezes eram vistos no «Baleizão» a chupar canecas de cerveja com o Reis Teixeira e outros «artistas» do «Miradouro»), não davam quaisquer garantias políticas, a quem pautava a sua conduta pelo ideário dos ancestrais lutadores pela emancipação do povo angolano. Havia que marcar enérgica e urgentemente uma posição, fazer algo de diferente, talvez uma manifestação autêntica, já que intervir ali não tinha qualquer efeito prático, para além de poder trazer problemas... Com gente daquela, nunca se sabia o que poderia acontecer. A hora era de decisões rápidas a eficazes.
Arregimentou-se ali mesmo, no meio daquela concentração de colonos, para além dos elementos conhecidos como «nossos», as pessoas que se entendia estarem ali ou por curiosidade ou com outro objectivo, que não o dos oradores que no sopé da estátua do D. Afonso, se iam revezando, debitando inflamadas palavras e frases feitas, em tudo parecidas com as que ouvíamos na rádio, a dirigentes coloniais de outras paragens. Com ambiente, não foi difícil o recrutamento, arranjando-se umas 30 pessoas, gente que nestas coisas de simpatia pela emancipação do povo angolano, era sobejamente conhecida.
O grupo era constituído maioritariamente por negros, empregados da Fazenda, das Obras Públicas, dos Correios, do Banco de Angola, alguns conhecidos praticantes de desporto nos clubes de Luanda, com alguns outros curiosos á mistura.
Foi-se passando a palavra: - Vamos lá a cima, ao largo do palácio do Governo! Dois conhecidos dirigentes desportivos do Futebol Clube de Luanda que empunhavam um cartaz de pano com as palavras «SAUDAMOS A JUNTA DE SALVAÇÃO NACIONAL», foram de imediato «mobilizados». Acertaram-se pormenores. - Dentro de meia hora lá em cima, no palácio! - foi a palavra de ordem.
Um conhecido desportista assumiu a responsabilidade de arranjar meios para dar á «manifestação» no palácio do Governo um aspecto organizado, com meios para um discurso mais «directo», de acordo com os anseios do povo. - Preciso de deitar cá para fora «algumas coisas» que trago atravessadas na garganta há muitos anos!... assumia o desportista.
Sem perda de tempo, o nosso homem corre rapidamente ao Estádio dos Coqueiros onde consegue que o «Tio Rato» (Elvino Tadeu Bastos, «velho» benguelense), depois de. saber de tão «nobre missão», lhe faculta, sem pestanejar, o megafone da Associação de Atletismo, de que era dirigente. Na posse de tão importante instrumento, foi só respirar fundo e vencer a íngreme barroca que fica sobranceira ao velho Estádio. Chegado ao local, deparou-se ao desportista umas cinco centenas de pessoas, brancos e negros, que haviam já dado início ao «comício», os quais, para sua surpresa, escutavam ordeiramente as palavras do senhor Encarregado do Governo, tenente-coronel Soares Carneiro, que estava a terminar a sua intervenção e, como que em tom de despedida, como bom português, pôs toda aquela gente a cantar o hino português, num apoteótico remate final (era o chamado comício á moda do antigamente). - Porra!, isto não é nada assim - reage de imediato o desportista... E, vendo a inutilidade da manifestação, que afinal não era melhor nem pior do que a que se realizara no largo Afonso Henriques, assume a responsabilidade de dar a volta á situação.
De megafone em punho, chama a atenção de toda aquela gente e, dirigindo a sua intervenção para os oficiais que estavam na varanda do palácio, fronteira ao largo, «obriga» a que o «senhor Encarregado» escutasse aquilo que certamente não desejaria ouvir.
- Atenção!... Atenção!... nós estamos aqui, não para dar vivas a Portugal, mas para exigir a libertação de todos os presos políticos em Angola!...nós estamos aqui para que as autoridades portuguesas entrem imediatamente em diálogo com os representantes do povo angolano, para um cessar-fogo imediato!...nós estamos aqui para pedir a imediata extinção da PIDE! (vamos á PIDE!, vamos lá abaixo á PIDE! - gritaram imediatamente alguns europeus colocados na frente da manifestação). O desportista, não se desconserta. - Ninguém vai á PIDE! avisou. - Eles ainda têm as armas! ninguém saí daqui... para morrer! E continua: - Senhor Encarregado do Governo, transmita ás autoridades da Junta de Salvação Nacional, em Lisboa, que nós estamos com «eles», mas queremos que o povo angolano seja livre a independente! (Há aplausos, vivas a Angola Livre e à Liberdade, aplausos a mais aplausos), estava dado o «recado». Os presentes abraçam-se. Há afirmações de espanto. Então tu... também? Dá cá um abraço, camarada! Ali, naquele momento, aquela «onda» era de facto a verdadeira onda da Angolanidade.
Acabava apoteoticamente o comício que todos havíamos desejado, onde foram ditas com acutilância e objectividade as palavras que de momento eram as mais necessárias. Os angolanos presentes, alguns deles desportistas, saudaram entusiasticamente as acaloradas e vibrantes palavras. Alguns dos europeus, disfarçadamente, iam-se desmobilizando, quem sabe se por não os terem deixado acabar de cantar o hino.
No rescaldo, o coronel Soares Carneiro mandou recado ao homem do megafone, para que se deslocasse ao Palácio, para dialogarem. Este, experiente, aceitou na condição de levar consigo uma boa dúzia de apoiantes. E assim aconteceu. No átrio de entrada, onde a «delegação» da manifestação foi recebida, voltou a transmitir-se ao Encarregado do Governo o que havia sido dito no Largo, com a mesma acutilância, sem tibiezas. O coronel garantiu que sim, senhor... iria transmitir a Lisboa as preocupações transmitidas. E assim, em clima de absoluta militãncia, terminou, já o sol se escondia por detrás da Fortaleza, aquela que terá sido a primeira manifestação reivindicativa, de apoio à independência de Angola.
No dia seguinte, pela manhã, o Felizberto da Lello rejubilava. Camarada!... assim é que é! O velho livreiro, comunista do antigamente, catedrático nas questões de política angolana, estava eufórico, e comentava assim as afirmações de alguns brancos despeitados pela intervenção do desportista do Atlético, no dia anterior, no largo do palácio do Governo. - Eles que vão bardatuji ! Tratem mas é de fazer as malas porque qualquer dia é capaz de ser tarde!, rematava o «mais velho», homem que em Luanda, desde início dos anos cinquenta, conseguia como que por magia, «arranjar» livros proibidos pelo regime salazarista, que eram verdadeiras janelas abertas para o campo verde da esperança no futuro, em que acreditávamos - «A Mãe», «Fontamara», «O Cavaleiro da Esperança», «Subterrâneos da Liberdade», «Assim foi temperado o aço», «Esteiros», «Quando os Lobos Uivam», «Seara de Vento» e tantos outros.