Entrevista a Samir Amin

A Conferência de Bandung, 50 anos depois

Remi Herrera
Meio século depois dos governos e movimentos independentistas do «Terceiro Mundo» terem declarado, em Bandung, a «neutralidade» no complexo xadrez da guerra-fria, países e regiões inteiras voltam a sentir a ameaça da máquina de combate dos EUA. As guerras «preventivas» e a globalização neoliberal desbravam o retrocesso da paz e da cooperação entre os povos, colocando na ordem do dia o regresso ao «espírito» de Bandung.

«Os não-ali­nhados con­de­naram a es­tra­tégia im­pe­ri­a­lista dos EUA»

Numa entrevista cedida ao Avante!, Samir Amin, professor de economia e director do 3.º Fórum Mundial e do Fórum Mundial para a Alternativa, descortina as razões pelas quais Bandung adquire renovada actualidade.

Rémy Her­rera* : Há 50 anos, em 1955, os prin­ci­pais lí­deres asiá­ticos e afri­canos, de­pois de terem ga­ran­tido a sua in­de­pen­dência po­lí­tica, en­con­traram-se pela pri­meira vez em Ban­dung. Que pro­jecto ti­nham em comum?

Samir Amin: O que os líderes asiáticos e africanos trouxeram a Bandung estava longe de ser unânime. As correntes políticas e ideológicas que representavam, as perspectivas próprias que tinham quanto à construção ou reconstrução do futuro das suas sociedades, a relação com os países do Leste europeu, em todos estes tópicos encontravam-se muitas diferenças. Não obstante, um projecto comum permitiu aproximá-los e dar uma direcção própria à Conferência. A batalha pelo direito histórico à independência não estava completo. No programa mínimo comum surgiu então a descolonização política da Ásia e da África, questão que consideraram tratar apenas do início de um processo cujo fim seria a libertação económica, cultural e social.
Neste aspecto, ainda estavam divididos por duas perspectivas diferenciadas: Uma opinião maioritária que entendia ser possível alcançar o desenvolvimento na interdependência com a economia mundial; outra, dos líderes comunistas da região, que apontava o abandono do capitalismo como princípio para a reconstrução do campo socialista mundial, com a União Soviética ou na senda dos caminhos desta potência.
Por sua vez, os líderes capitalistas do Terceiro Mundo que não faziam planos de «abandonar o sistema» também não partilhavam uma mesma estratégia e táctica para o desenvolvimento, mas perceberam que a construção de sociedades independentes e desenvolvidas implicava um certo grau de conflito com as potências dominantes do Ocidente. A corrente radical estimou que tinha que pôr um termo ao controle das economias nacionais pelos monopólios capitalistas internacionais. Preocupados em manter a independência conquistada, recusaram-se a fazer parte do tabuleiro militar planetário e serem usados como bases para completar o cerco aos países socialistas, como a hegemonia norte-americana procurou impor. De todo o modo, também assumiram que a recusa em fazer parte do campo militar da Nato não implicava colocarem-se sob a protecção do principal adversário desta, a URSS, versão que origina a conotação da Conferência como «neutral» ou «não-alinhada», denominação que passou a corresponder ao grupo de países e à organização criada a partir do espírito de Bandung.

Qual era o prin­cipal ob­jec­tivo das po­lí­ticas de de­sen­vol­vi­mento apro­vadas em Ban­dung?

O objectivo das políticas de desenvolvimento aplicadas na Ásia, África e na América Latina foram, no essencial, idênticas, apesar das diferenças ideológicas. Sob a sua larga diversidade, todos os movimentos de libertação nacional subscreviam os mesmos objectivos de independência política, modernização do Estado e industrialização da economia. Nestes, a intervenção estatal era considerada absolutamente decisiva. A orientação que hoje contesta a «intervenção estatal», sempre de forma negativa e contrária ao que chamam de «espontaneidade do mercado», aos interesses privados associados às tendências «espontâneas» do mercado, não estava, à época, muito em uso. Pelo contrário, o senso comum partilhado por todos os poderes via na intervenção estatal um elemento essencial da construção do mercado e da modernização. A esquerda radical de aspirações socialistas via nesta expansão do Estado uma gradual expulsão da propriedade privada. Contudo, a direita nacionalista, que não subscreveu este objectivo, não foi menos intervencionista e percursora do controle estatal: a reestruturação dos interesses privados que propunha requeria mesmo um intenso controle do Estado. O actual discurso dominante não teve, na altura, eco significativo.

Quer com isso dizer que a so­li­da­ri­e­dade entre os povos do Sul ainda não se es­ta­be­leceu?

Neste momento, a solidariedade entre países do Sul, tal como se expressou fortemente de Bandung (1955) até Cancun (1981), do ponto de vista político (como não-alinhados) e ao nível económico (através da assunção de posições adoptadas por 77 nações nas instituições da ONU), nessa perspectiva já não existe. A integração destes países implementada pelo trio de organizações internacionais, a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), foi a principal responsável do enfraquecimento do grupo dos 77 e do movimento dos não-alinhados. De qualquer modo, parece haver vontade de retomar o processo com a tomada de consciência da necessária solidariedade entre países do Sul.
A arrogância dos EUA e a implementação do seu projecto de «controle militar do planeta», aliadas à proliferação de guerras alimentadas e decididas unilateralmente por Washington, são a origem da recente posição de força resultante do encontro dos não-alinhados em Kuala Lumpur, em Fevereiro de 2003. Os não-alinhados condenaram a estratégia imperialista dos EUA. Estão a perceber que os gestores da globalização neoliberal não têm nada para lhes oferecer, por isso, têm que recorrer à força militar para se imporem fazendo o favor ao projecto norte-americano.
A área que Washington apontou para as suas intervenções militares, ininterruptas desde 1990, engloba o Médio Oriente (Iraque e Palestina), os Balcãs, a Ásia Central e o Cáucaso. O objectivo traçado pelos EUA envolve vários elementos: 1) Tomar conta das principais áreas de recursos petrolíferos mundiais e, consequentemente, pressionar a Europa e o Japão até ao estatuto de aliados vassalos; 2) Estabelecer bases militares permanentes no centro do «antigo mundo», na Ásia Central, com distâncias equivalentes até Paris, Joanesburgo, Moscovo, Pequim ou Singapura, e a preparação de outras guerras «preventivas» submetendo as grandes potências como parceiros com quem «é necessário negociar». Em primeiro lugar aparece a China, mas também a Rússia e a Índia. A perseguição destes objectivos implica ainda a instalação de governos fantoche na região.
De Pequim a Nova Deli e a Moscovo, as guerras «made in USA» são cada vez mais entendidas como ameaças contra a China, a Índia e a Rússia do que contra as vítimas imediatas, como, por exemplo, o Iraque.

Quais serão as li­nhas de ori­en­tação dessa ali­ança de países do Sul?

Ao nível político, isso implica a condenação do princípio norte-americano das guerras «preventivas» e a evacuação das bases militares que mantém na Ásia, África e América Latina. De agora em diante, as posições de Bandung de não aceitação de bases militares estrangeiras no Terceiro Mundo voltam à agenda. Os não-alinhados tomaram posições próximas das da França e da Alemanha no Conselho de Segurança da ONU, facto que contribuiu para acentuar o isolamento diplomático do agressor.
No campo económico, as linhas mestras de uma alternativa que o Sul pode defender colectivamente através da convergência de interesses entre si pode agora tomar forma. A ideia de que as transações internacionais de capital devem ser controladas está de volta, da mesma maneira que está de regresso a disposição de controlar os investimentos. Entre os países do Sul, muitos começam a constatar que não é possível crescer sem uma política agrícola de desenvolvimento. Esta implica a protecção dos camponeses das devastantes consequências de desagregação por efeito da «competitividade» que a OMC lhes impõe, assim como a preservação da capacidade de produção alimentar nacional. A dívida do Terceiro Mundo também não é mais sentida como economicamente insolúvel, mas antes como uma questão legítima que deve ser invocada.

É viável e pos­sível um novo in­ter­na­ci­o­na­lismo que as­socie a Ásia, África, Amé­rica La­tina e Eu­ropa?

Sim, é. As condições para a convergência existem e permitiriam, pelo menos, a convergência de interesses dos povos do tal «antigo mundo». Tal convergência pode cimentar-se, ao nível da diplomacia internacional, pela consistência do eixo Paris-Berlin-Moscovo-Pequim, reforçado pelo desenvolvimento de relações amigáveis destes com a frente reconstruída entre Ásia e África.
A solidariedade com as lutas populares na América Latina é igualmente fundamental. Este processo desenrola-se sem admitir que caminha na direcção da convergência referida, a qual, unindo os diversos povos, reduziria a nada as criminosas ambições dos EUA.
Neste momento, estes objectivos devem ser encarados como altamente prioritários. A desmontagem do projecto norte-americano determina a fase da luta: nenhum progresso democrático ou social será possível ou sequer duradouro enquanto este plano hegemónico não for descartado. Para atingir este objectivo, a Europa deve, porque pode fazê-lo, libertar-se do «vírus liberal», mas esta iniciativa só pode vir dos povos. Claro, os sectores dominantes do capital – cujos interesses são defendidos pelos governos europeus com exclusiva prioridade – são os mais acérrimos defensores da globalização neoliberal e concordam em pagar o preço da subalternização aos EUA.
Os povos da Europa têm uma visão bem diferente do projecto europeu, o qual pretendem socialmente coeso, da mesma forma que pretendem ver as relações com os restantes países e povos regidas por critérios de justiça. Se esta cultura política de humanismo da «velha Europa» ganhar, pode surgir então uma convergência autêntica entre a Europa e o Terceiro Mundo que constituirá a base de construção de um mundo multipolarizado, democrático e pacífico.

* Investigador da Universidade de Paris


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