Os dois lados
Era, da Cidade do Vaticano e em directo, a transmissão da missa inaugural do pontificado de Bento XVI. Completamente justificada e respeitável, já se sabe, mas um pouco fatigante para o telespectador laico e agnóstico depois dos vários dias em que a Praça de São Pedro esteve quase em permanência nos nossos ecrãs enquanto alguns se perguntavam com alguma ansiedade se seriam brancos ou negros, ou eventualmente assim-assim, o rumo e o Papa que mais tarde ou mais cedo nos seriam mostrados. Para mais, desta vez a transmissão da missa papal ia acontecendo simultaneamente em dois canais, a RTP1e a TVI, o que limitava a possibilidade de escolha. Por mim, escolhi a RTP, mais institucional e com menos pecados, embora sejam mais graves alguns dos que comete exactamente porque não é da Media Capital, como a TVI, mas sim do Estado, que somos nós todos embora ela finja que não, o que aliás é por si só gravemente pecaminoso. Estava-se, pois, nisto; eu a olhar meio distraído o Papa que alguns jovens mais habituados a códigos e comunicação informática que à velha numeração romana designou por Bento Xis-Vê-I, eu a ouvir o que vinha do televisor com uma orelha que seria a esquerda e a aplicar a orelha que necessariamente seria a direita às notícias que a rádio me trazia do congresso do CDS-PP, quando o que disse um comentador da cerimónia religiosa e de quanto a envolvia quase me sobressaltou. Mais exactamente: quase me deslumbrou, porque há muito que não me era dado ouvir na TV palavras tão lúcidas, tão justas, mas também tão corajosas em face das circunstâncias actuais. Dizia o comentador, cujo nome infelizmente não pude conhecer mas que, parece-me, bem podia ser um sacerdote, que um católico não pode estar simultaneamente, «ao lado dos crucificadores e ao lado dos crucificados». E segundos depois repetiu a fórmula quase de igual maneira, como para que ficasse bem claro o que dissera e que não o dissera nem por acaso nem por lapso.
A regra e as (muitas) excepções
A questão é que, como acontece com muita outra gente, tenho idade e experiência directa ou indirecta para saber que muitas vezes um número excessivo se não maioritário de católicos esteve do lado dos crucificadores. Esta verificação não é segredo para ninguém, está na História do passado e na contemporaneidade , é reconhecida com inevitável tristeza por muitos, muitos católicos de entendimento iluminado não sei se pelo Céu, se pela Razão, se pela feliz convergência de ambos. Tenho mesmo para mim como altamente provável que esses se contam entre o larguíssimo número de melhores católicos que, sendo-o, são também cristãos, o que com razão ou sem ela considero não ser exactamente a mesma coisa. Ora, aquela voz que vinha dizer que os católicos não podem estar «do lado dos crucificadores», e que o dizia como que urbi et orbi graças à TV, com perdão da utilização neste modesto lugar laico de uma fórmula de habitual uso papal, teve sobre mim um efeito tonificante, sem dúvida verdadeiramente redentor do apagado e vil enfado em que mergulhara. Nunca digeri com facilidade que, em aparente obediência a uma tradição que será católica mas não me parece cristã, o peso do catolicismo luso tenha estado ao lado dos miguelistas contra os liberais, dos monárquicos da transição do século XIX para o século XX, contra os republicanos, dos senhores do «Estado Novo» contra os antifascistas. Isto para não recuar mais no tempo e, sublinhe-se, sem esquecer os muitos que constituíram excepções honrosíssimas e verdadeiramente cristãs à triste regra geral. Sou dos que, um dia, se extasiaram perante os versos que Aragon escreveu cantando em metáfora de sabor medieval a resistência conjunta de católicos e comunistas à bestialidade da ocupação nazi: «Celui qui croyait ao ciel / celui qui n’y croyait pas, / tous les deux aimaient la Belle / priosinière des soldats (...)». Foi talvez a partir dessa altura, há muito tempo, que mais claramente vi que o lugar dos cristãos era «ao lado dos crucificados», o lado que já então eu escolhera. Digamos que, então, fiquei à espera deles. Acrescente-se que não esperei em vão, embora não tenha sido uma espera fácil nem copiosamente frutuosa. Vinha agora a voz daquele comentador dizer-me que não apenas estive certo como o estiveram os muitos que recusaram o atraente «lado dos crucificadores». Voz na insuspeita TV enquanto o ex-arcebispo de Munique, envolto nas brancuras papais, oficiava. Aquela manhã, que se iniciara como um fastio, tornara-se-me radiosa.
A regra e as (muitas) excepções
A questão é que, como acontece com muita outra gente, tenho idade e experiência directa ou indirecta para saber que muitas vezes um número excessivo se não maioritário de católicos esteve do lado dos crucificadores. Esta verificação não é segredo para ninguém, está na História do passado e na contemporaneidade , é reconhecida com inevitável tristeza por muitos, muitos católicos de entendimento iluminado não sei se pelo Céu, se pela Razão, se pela feliz convergência de ambos. Tenho mesmo para mim como altamente provável que esses se contam entre o larguíssimo número de melhores católicos que, sendo-o, são também cristãos, o que com razão ou sem ela considero não ser exactamente a mesma coisa. Ora, aquela voz que vinha dizer que os católicos não podem estar «do lado dos crucificadores», e que o dizia como que urbi et orbi graças à TV, com perdão da utilização neste modesto lugar laico de uma fórmula de habitual uso papal, teve sobre mim um efeito tonificante, sem dúvida verdadeiramente redentor do apagado e vil enfado em que mergulhara. Nunca digeri com facilidade que, em aparente obediência a uma tradição que será católica mas não me parece cristã, o peso do catolicismo luso tenha estado ao lado dos miguelistas contra os liberais, dos monárquicos da transição do século XIX para o século XX, contra os republicanos, dos senhores do «Estado Novo» contra os antifascistas. Isto para não recuar mais no tempo e, sublinhe-se, sem esquecer os muitos que constituíram excepções honrosíssimas e verdadeiramente cristãs à triste regra geral. Sou dos que, um dia, se extasiaram perante os versos que Aragon escreveu cantando em metáfora de sabor medieval a resistência conjunta de católicos e comunistas à bestialidade da ocupação nazi: «Celui qui croyait ao ciel / celui qui n’y croyait pas, / tous les deux aimaient la Belle / priosinière des soldats (...)». Foi talvez a partir dessa altura, há muito tempo, que mais claramente vi que o lugar dos cristãos era «ao lado dos crucificados», o lado que já então eu escolhera. Digamos que, então, fiquei à espera deles. Acrescente-se que não esperei em vão, embora não tenha sido uma espera fácil nem copiosamente frutuosa. Vinha agora a voz daquele comentador dizer-me que não apenas estive certo como o estiveram os muitos que recusaram o atraente «lado dos crucificadores». Voz na insuspeita TV enquanto o ex-arcebispo de Munique, envolto nas brancuras papais, oficiava. Aquela manhã, que se iniciara como um fastio, tornara-se-me radiosa.