Para lá das aspirinas

Correia da Fonseca
A semana mediática começou com uma espécie de tempestade de intensidade moderada, infelizmente não daquelas que implicam a queda de chuvadas: será ou não razoável que as farmácias percam, em favor dos hipermercados e eventualmente outros lugares, a exclusividade da venda de medicamentos não sujeitos a receita médica? A imprensa fez inquéritos de rua, a rádio dedicou à questão alguns dos seus programas ditos interactivos, a TV fez o mesmo pelo menos através do «Opinião Pública» do SIC-Notícias, com a presença em estúdio de um representante da Ordem dos Farmacêuticos e outro da Deco. Neste programa, que naturalmente é aqui o que mais interessa, a afluência de telefonemas de farmacêuticos em relação aos de cidadãos em geral correspondeu a um ratio muitíssimo mais alto que o verificável se considerarmos a globalidade da população, distância que talvez seja interessante registar. Quanto ao problema propriamente dito e no que pessoalmente me diz respeito, perdoe-se-me o individualismo, tanto me faz: na minha rua, que não é assim tão grande, tenho três farmácias, e não faço grande questão que o engenheiro Belmiro possa vender aspirinas nos seus hipermercados, além de que ele ou outros como ele são bem capazes de terem na família licenciados(as) com direito exclusivo à propriedade de farmácias. Quanto a esta exclusividade, afigura-se-me que é qualquer coisa como a reminiscência do direito de pernada medieval, ainda que naturalmente com outro âmbito de aplicação, mas essa é outra conversa. Quanto à ameaça, brandida pelo senhor doutor farmacêuticos presente no «Opinião Pública», de que o paracetamol pode conduzir à necessidade de transplantação hepática, parece-me integrar o mais reles terrorismo argumentativo, mas permite-me que eu vá pedir explicações aos farmacêuticos da minha rua por nunca me terem avisado de tamanho risco.

Com brevidade

É claro que a questão, mesmo assim minúscula como me parece ser, pode incluir-se no enorme problema de saúde em Portugal mas, nesse plano, até já a televisão abordou aspectos de outra dimensão e premência sem que contudo se tenha empenhado em conferir-lhes o impacto público que lhe é devido, e com urgência. Para não recuar muito no tempo, citarei o que há ainda poucos dias a mesma SIC nos contou da pavorosa situação em que se encontram muitos utentes do Centro de Saúde da Buraca, aqui mesmo à beirinha de Lisboa. Para que ali se obtenha a esmolinha de uma consulta, é para muitos necessário ingressar em longas filas que começam a formar-se em plena madrugada, à chuva quando chove, ao frio de rachar como este Inverso se tem verificado. Segundo a SIC, um desses mendigos-de-consulta, de idade avançada como muitos outros e como eles obviamente doente, teve de ser como muitos outros e como eles obviamente doente, teve de ser transportado da fila onde se encontrava para o serviço de urgências do hospital, vítima de gravíssima doença súbita. Mas eu bem sei que não é preciso ir à Buraca para testemunhar a existência dessas sinistras filas que se formam nas madrugadas agressivas: aqui mesmo, a menos de quinhentos metros do lugar onde resido, na orla periférica da capital, posso testemunhar o mesmo assustador espectáculo. E bem se sabe que do Minho ao Algarve (não sei se deva escrever «do Minho a Timor» para desse modo me render ao surpreendente critério da drª. Maria José Nogueira Pinto exposto em recente entrevista) abunda o mesmo perturbante espectáculo.

Sendo assim, entendo que a medida que o senhor primeiro-ministro anunciou ao País, em pleo acto de posse, acerca da venda de aspirinas, similares e correlativos, só terá efectiva relevância se for uma espécie de símbolo e preâmbulo a outras medidas que contrariem interesses de outros lobbies, isto sem querer desfazer no lobbie dos farmacêuticos. E entendo também que a televisão, que tão pressurosamente quis desenvolver esta polémica dando-lhe projecção mediática e chamando o cidadão comum a opinar, tem o dever cívico de se empenhar de igual modo, pelo menos, na informação acerca dos muitos dramas, para não falar em tragédias, que já estão a ser provocados pelo estado a que o Serviço Nacional de Saúde tem vindo a ser reduzido por sucessivos governos, com destaque para o agora findo. Reportagens em Centros de Saúde e hospitais, dos quais o Amadora-Sintra pode ser paradigmático, darão decerto abundante material para informação e reflexão num primeiro tempo, para decididas intervenções governamentais num tempo seguinte. Com brevidade. Porque, para muitos, já é tarde.


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