Em defesa do Serviço Nacional de Saúde
Neste momento, no Serviço Nacional de Saúde (SNS) confrontam-se aquilo que poderemos chamar, para sistematizar e para tornar mais claras as diferenças, quatro sistemas diferentes de gestão que interessa analisar para conhecer bem, pois a escolha que um futuro governo do PS fizer neste campo mostrará com clareza os interesses que defende, e determinará o que será no futuro o SNS e, consequentemente, que saúde terão os portugueses. Apesar dos defensores de cada um deles apresentarem razões técnicas para defender a sua posição, a verdade é que cada um destes sistemas de gestão reflecte e defende interesses de classe diferentes como se procurará mostrar neste estudo.
Os quatro sistemas de gestão que estão neste momento em confronto no SNS em Portugal são os seguintes: (1) Sistema de gestão público administrativo da Saúde; (2) A empresarialização, ou sistema de gestão economicista da Saúde; (3) Sistema de gestão privado explorando equipamentos adquiridos com fundos públicos e um mercado financiado pelo Orçamento do Estado; (4) Sistema de gestão pública da Saúde orientada pelos critérios da eficiência, eficácia e de responsabilização.
Comecemos pela análise do primeiro, a gestão pública administrativa da Saúde.
Este é o sistema ainda dominante no SNS, o qual permitiu ao nosso País alcançar importantes ganhos no campo da Saúde. Foi este sistema de gestão que permitiu alargar os cuidados de saúde à generalidade dos portugueses; que tornou possível baixar a mortalidade perinatal (mortes por 1000 nascimentos), entre 19973 e 2000, de 33,3 por mil para apenas 5,5 por mil (a média na UE15 era ainda de 6,3 por mil); que baixou a mortalidade materna para apenas 2,5 por mil já em 2000, quando a média na UE15 era de 5,4 por mil; que permitiu baixar a mortalidade infantil (mortes até um ano), entre 1973 e 2001, de 44,3 para apenas 5 por mil; que aumentou a esperança de vida dos portugueses, entre 1973 e 2001, de 69 anos para 76,9 anos (73,5 anos para os homens e 80,3 anos para as mulheres) e que tem determinado que a esperança de vida em Portugal aumente um ano em cada 3,5 anos.
Foi ainda este sistema de gestão que colocou Portugal no 12.º lugar entre todos os países do mundo quanto à prestação de cuidados de saúde à população.
No entanto, apesar de ter permitido todos estes avanços na Saúde é já claro que este modelo de gestão está esgotado porque determina actualmente importantes perdas de eficiência e de eficácia, gerando insatisfação na população, o que está a ser aproveitado pelas forças que querem destruir o SNS.
Sistema esgotado
As causas que explicam o esgotamento deste sistema de gestão são, a nosso ver, nomeadamente as seguintes.
Em primeiro lugar, é um sistema em que a gestão não é orientada pelos princípios da eficiência e da eficácia, e que se baseia fundamentalmente na técnica do orçamento incremental (para elaborar o orçamento de um ano, acrescenta-se aos valores do orçamento do ano anterior uma determinada percentagem e os valores para fazer face às despesas com novos projectos), em que não existe responsabilização pelo cumprimento dos objectivos, e em que é elevada a subutilização de meios quer humanos quer materiais até devido à falta de planeamento. É prova disso, factos enumerados pelo ex-ministro da Saúde, que não sofreram contestação pública por parte dos atingidos, de que «nos hospitais públicos, cada cirurgião faz, em média, uma cirurgia de 3 em 3 dias úteis. A utilização dos blocos operatórios é também preocupante, pois em cada sala são feitas apenas 2,3 a 2,5 operações por dia útil. O número de pequenas e média cirurgias é apenas de 0,4 por cirurgião e por dia útil». Seria extremamente importante conhecer a situação actual neste campo, mas as informações divulgadas quer pelo Ministério da Saúde quer pelos próprios hospitais, incluindo Hospitais SA, cujos relatórios e contas tivemos oportunidade de analisar, não fornecem este tipo de informação o que revela também a falta de qualidade da gestão hospitalar actual.
Associada a esta situação que continua a dominar a gestão actual no SNS, a promiscuidade público – privado que o professor Manuel Antunes de Coimbra considera «a principal causa da falta de produtividade nos serviços hospitalares» (pág. 60 do livro que publicou) continua a imperar no SNS; igualmente continua a dominar uma medicina essencialmente curativa em prejuízo da promoção da Saúde, de que é prova o anúncio da construção de 10 novos hospitais em parceria com grandes grupos económicos, coexistindo com a falta de investimento e de meios nos centros de Saúde onde, por ex., não existem médicos de família para mais de 800 000 portugueses, e onde especialistas para promover a Saúde da população – pediatras, dentistas, oftalmologistas, etc, – praticamente desapareceram ou nunca existiram.
Por outro lado, as graves assimetrias entre as diferentes regiões do País no campo da Saúde não têm diminuído (por ex., a região de Lisboa e Vale do Tejo tem cerca de 34% da população mas 44% dos médicos). A nível da gestão hospitalar coexistem elevadas dívidas a fornecedores com elevadas dívidas por cobrar, incluindo de companhias de seguros (por ex. em Junho de 2002, as dívidas aos hospitais não cobradas atingiam 617,9 milhões de euros).
É evidente que todas estas situações de ineficiência e de ineficácia só se têm perpetuado porque existem grupos de interesses instalados que lucram com elas, e que estão interessados em mantê-las. Assim, defender de uma forma cega aquilo a que chamamos a gestão pública administrativa da Saúde, como muitas vezes é feito, só contribuirá, a nosso ver, para facilitar a acção daqueles que pretendem destruir o Serviço Nacional de Saúde.
Primeiro passo para a privatização da Saúde
Em relação ao modelo de gestão economicista da Saúde já existem dois exemplos concretos paradigmáticos que, mais de que quaisquer palavras, mostram com clareza o que ele significa na prática.
E esses dois exemplos são os contratos tipo impostos pelo Ministério da Saúde aos Hospitais SA e a proposta de ACT para os mesmos hospitais apresentada pelo Ministério da Saúde aos sindicatos do sector. Destes dois documentos apenas se vai referir alguns aspectos significativos e paradigmáticos.
Em relação ao contrato programa assinado entre os hospitais SA e o Ministério da Saúde, através da chamada unidade de missão, interessa dizer que na sua elaboração os profissionais de Saúde desses hospitais foram marginalizados, continuando a desconhecer o seu conteúdo, não existindo qualquer contratualização com os respectivos serviços visando assegurar o seu cumprimento, chegando ao ponto desses contratos serem secretos mesmo para os profissionais dessas unidades, que nunca os conheceram, analisaram e debateram, nomeadamente a sua desagregação a nível de cada serviço. Nesses contratos constam cláusulas tipo que são um verdadeiro atentado a um serviço público de Saúde.
Esses hospitais recebem mais quando não atingem as metas acordadas do que quando ultrapassam essas metas. Por exemplo, por cada internamento não realizado abaixo da meta de produção recebem 1250 euros, e por cada internamente realizado acima dessa meta recebem apenas 638 euros. Em relação às consultas externas, o preço pago é de 36 euros por cada consulta que realizem a menos, e apenas 19 euros por cada consulta que realizem a mais.
Desta forma, fica totalmente claro que o objectivo deste sistema de gestão é puramente economicista, ou seja, reduzir despesas, e não a satisfação das necessidades da população.
Situação semelhante se verifica em relação à proposta de ACT para os Hospitais SA apresentada pelo Ministério da Saúde. Recordemos apenas algumas cláusulas dessa proposta governamental. O horário de trabalho semanal de todos os trabalhadores seria aumentado para 40 horas e o dos médicos e enfermeiros para 9 horas diárias e 45 semanais (cláusula 26.ª). A remuneração hora paga aos médicos baixaria, em média, 30%, a dos enfermeiros em 10% e a dos outros trabalhadores baixaria em média entre 10% e 16%. Só seria considerado trabalho nocturno, com direito a acréscimo de remuneração, o realizado entre as 24 horas e as 7 horas (cláusula 81.ª). O regime de comissão de serviço, que é um contrato extremamente precário pois a entidade patronal pode despedir o trabalhador quando quiser, passaria a ser aplicado a todos os profissionais de Saúde (cláusula 64.ª). A definição do local de trabalho seria alargada e passaria a abranger, por exemplo, o centro hospitalar com unidades de Saúde instaladas em vários concelhos (cláausula 25.ª). Os profissionais de Saúde passariam a estar sujeitos a transferências obrigatórias para outras unidades de Saúde a que não se poderiam opor (cláusula 70.ª). Aspectos essenciais das relações de trabalho, como são a avaliação, as promoções, etc., deixariam de poder ser negociadas pois passariam a ser abrangidas por regulamentos internos, em que o poder é exclusivamente da entidade patronal.
Através destes dois exemplos concretos paradigmáticos fica claro que a empresarilização da Saúde no âmbito do SNS tem como objectivo fundamental reduzir despesas à custas dos utentes e dos profissionais de Saúde, determinando a degradação do serviço de Saúde prestado à população, e constituindo um passo importante na direcção da privatização do sistema público da Saúde, já que introduz neste a lógica privada.
É preocupante que o programa do PS para a Saúde afirme que um dos objectivos será «dotar os hospitais públicos de mecanismos de gestão efectiva, prosseguindo o processo de empresarialização» (pág. 80).
A gestão privada da Saúde à conta do OE
O terceiro sistema é a gestão privada do sistema público de Saúde com base na exploração de equipamentos e instalações adquiridas com fundos públicos e num mercado financiado pelo Orçamento do Estado.
O edifício jurídico que permite a gestão e a exploração privada da Saúde pública foi construído pelo governo do PSD/PP. Assim, estes partidos, enquanto estiveram no governo, começaram por aprovar a Lei 27/2002 que alterou cirurgicamente a Lei de Bases da Saúde que estava em vigor (a Lei 48/90) em três aspectos essenciais, a saber: a Base XXIII para poder introduzir no sector de Saúde pública os contratos individuais de trabalho e aplicar o Código do Trabalho visando destruir as carreiras dos profissionais de Saúde; a Base XXXIII para que o financiamento das unidades de Saúde passasse a ser feita com base numa tabela de preços e em contratos, o que era fundamental para criar um mercado de Saúde para os privados financiado pelo OE; e a Base XXXVI para poder transformar os hospitais públicos em sociedades anónimas, passo indispensável para depois proceder à sua privatização.
Seguidamente publicaram várias leis que, por um lado, tornam possível a entrega de equipamentos, instalações, serviços públicos de Saúde e mesmo de unidades de Saúde à exploração privada e, por outro lado, garantem o financiamento pelo Orçamento do Estado de um mercado seguro e lucrativo para esses mesmos grupos privados.
Assim, a chamada nova Lei de Gestão Hospitalar permite no seu art.º 10.º a entrega «da exploração ou a subcontratação de um centro de responsabilidade ou de acção médica», ou seja, dos serviços dos hospitais públicos a «entidades privadas que demonstrem capacidade e competência técnica». Esta entrega à exploração privada de serviços de Saúde pública é da competência do ministro que, no entanto, poderá até delegar nas próprias ARS (art.º 12). Depois foram publicados os decretos leis que transformaram os 34 Hospitais Públicos em 31 Hospitais SA onde, em todos eles, aparece uma disposição que permite às respectivas administrações «celebrar contratos ou acordos que tenham como objecto a gestão de partes funcionalmente autónomas do hospital» (ex. art.º 9.º do DL 272/2002). Seguidamente foi publicado o DL 185/2002, a chamada lei parceria público-privados, que permite a entrega e a exploração de 10 novos hospitais previstos pelo governo PSD/PP a grandes grupos económicos. É um enorme negócio para os privados que, tomando como base os dados do concurso para construção e exploração do Hospital de Loures, estimamos entre 1400 e 2000 milhões de contos, e que garantirá aos grupos económicos contratos seguros e, naturalmente lucrativos, para um período de tempo que varia entre 10 e 30 anos.
Os próprios centros de Saúde não escaparam a esta fúria legal privatizadora. Assim, em 2003 é publicado o Decreto Lei n.º 60/2003 que, no seu art.º 23, estabelece que «sob proposta da ARS pode o ministro autorizar a gestão de um centro de Saúde ou de parte funcionalmente autónoma» por entidades privadas com fins lucrativos.
Paralelamente, e para tornar seguro e lucrativa esta exploração privada de bens adquiridos ou construídos com fundos públicos, em todas as leis referidas anteriormente existe uma disposição que visa garantir um mercado seguro para os privados financiado pelo Orçamento do Estado. Assim, na nova Lei de Gestão hospitalar é o art.º 5.º que estabelece que o pagamento é feito com base numa tabela de preços e acordos com o SNS. Em relação aos Hospitais SA é o art.º 25.º dos decretos lei que os criaram. Relativamente aos Hospitais construídos com base na chamadas parcerias público-privados é o art.º 18.º do DL 185/2002. Finalmente, em relação aos centros de saúde é o art.º 19 do DL 60/2003.
Desta forma, o governo PSD/PP construiu o edifício jurídico que permite a entrega da Saúde pública à exploração privada com o apoio do Estado.
Mais despesas para o Estado
Contrariamente ao que muitas vezes se pretende fazer crer a gestão privada não reduz os custos. Até os aumenta porque incorpora o lucro e o risco do privado que tem de ser pago. É evidente que se o grupo Mello está interessado em ficar com a exploração de metade dos Hospitais PPP e também dos Hospitais SA, como um dos seus principais responsáveis já afirmou publicamente, não é para perder dinheiro, mas assim para obter lucros, e quanto maiores melhor.
De acordo com dados divulgados pela própria Organização Mundial de Saúde, os países que optaram por um modelo de Saúde com domínio dos privados são precisamente aqueles que apresentam despesas com a Saúde mais elevadas e onde o crescimento tem sido maior. Por exemplo, o Estados Unidos, que são normalmente apresentados com exemplo de um sistema de Saúde predominantemente privado, em 2002, as despesas com a Saúde corresponderam a 14,6% do PIB, enquanto na UE15 representavam, em média, 9% do PIB. Por outro lado, na UE15, em média apenas 25% da despesa total com a Saúde é suportada pelos próprios utentes (em Portugal ultrapassa os 30%), enquanto nos EUA a percentagem da despesa com a Saúde que é suportada directamente pelos utentes ronda os 55%. Portanto, no «paraíso privado norte-americano» gasta-se muito mais com a Saúde do que na UE15, e a parte paga directamente pela população é muito superior à registada na UE15, pois nesta em média 75% é suportada directamente pelo Estado, enquanto nos EUA a parcela suportada pelo Estado corresponde apenas a 45% da despesa total do País com a Saúde.
O programa eleitoral do PS apenas contém o compromisso de transformar os Hospitais SA em Entidades Empresariais Públicas (as chamadas EPE – pág. 80 do Programa), o que significa, por um lado, que o seu capital terá de ser detido pelo Estado e por outras entidades públicas (art.º 26 do DL 558/99), o que é positivo; e, por outro lado, a aplicação às EPE do contrato individual de trabalho e do Código do Trabalho, bem como dos princípios de gestão empresarial ou economicista, o que é bastante negativo. Para além disto, o Programa do PS apenas promete revogar o DL 60/2003 (pág. 79) e rever (não acabar) o modelo de parcerias público-privados (pág. 80 do programa), o que significa, na prática, a entrega dos novos hospitais à exploração privada. Parece ser também intenção do PS manter as alterações que o PSD e o CDS introduziram na Lei de Bases da Saúde assim como a nova Lei de gestão hospitalar. Pelo menos, no Programa não existem quaisquer medidas anunciadas em relação a estas matérias fundamentais.
Gestão pública eficaz da Saúde
A implementação no Serviço Nacional de Saúde de uma gestão orientada pelos princípios da eficiência, eficácia e responsabilização obriga, a nosso ver, à introdução de profundas mudanças no SNS assim como a alteração da cultura ainda nele dominante. E essas modificações são nomeadamente as seguintes:
• Acabar com a promiscuidade entre o público e o privado, separando os dois sistemas. Por ex., não devia ser admissível que um director ou um especialista do serviço de hemodiálise –nefrologia – de um hospital público possa trabalhar simultaneamente numa das principais multinacionais de hemodiálise instaladas em Portugal, como são a FRESSENIUS e a GAMPRO ou possuir uma empresa para fazer o mesmo;
• Criar carreiras motivadoras e compensadoras para os profissionais de saúde que optem integralmente pelo sistema público;
• Investir fortemente na promoção da Saúde destinando uma parcela muito maior dos recursos disponibilizados pelo Estado para Saúde aos centros de Saúde, apetrechando-os com os meios materiais e humanos de que necessitam;
• Investir mais no ensino da Saúde de forma a formar os profissionais que o Ppaís precisa;
• Implementar nas unidades de Saúde uma gestão baseada nos princípios da eficiência, eficácia e responsabilização, o que pressupõe a contratualização aos diversos níveis de responsabilidade com base num orçamento e num plano anual elaborados com a participação dos respectivos profissionais, de forma a garantir a eficiente e plena utilização dos meios existentes assim como a responsabilização dos profissionais pelo cumprimento do orçamento e plano. Não é admissível a subutililização de meios materiais e humanos, incluindo de serviços inteiros, que se continua a verificar em muitas unidades de Saúde devido à ausência de um planeamento e de uma responsabilização eficaz, e até de interesses instalados que tiram partido de tal situação;
• Criar redes de aprendizagem com as boas práticas verificadas na área da Saúde acessível aos respectivos profissionais e de um cartão de utente com os dados clínicos do seu possuidor, instrumentos importantes para aumentar a eficiência e a eficácia dos meios utilizados;
• Impulsionar fortemente a utilização dos genéricos, garantindo a sua qualidade, e tornando obrigatório que os médicos os prescreverem;
• Levar a cabo negociação muito mais agressiva e eficaz com os laboratórios de forma a baixar os preços de medicamentos escandalosos que praticam e alterar a comparticipação dos medicamentos com base no preço de referência, que se tem traduzido num aumento insuportável de encargos para os doentes com mais baixos rendimentos, e tornar gratuitos os medicamentos destinados a doenças crónicas.
É evidente, que não é «prosseguindo o processo de empresarialização» nem apenas revendo a chamada lei de parceria púublico-privados (DL 185/2002) como defende o PS na pág. 80 do seu Programa eleitoral, nem entregar a gestão da Saúde pública à exploração privada como defendem Correia Campos, ex-ministro da saúde do PS, o PSD e o CDS que se resolverão os problemas que enfrenta actualmente o Serviço Nacional de Saúde.
Comecemos pela análise do primeiro, a gestão pública administrativa da Saúde.
Este é o sistema ainda dominante no SNS, o qual permitiu ao nosso País alcançar importantes ganhos no campo da Saúde. Foi este sistema de gestão que permitiu alargar os cuidados de saúde à generalidade dos portugueses; que tornou possível baixar a mortalidade perinatal (mortes por 1000 nascimentos), entre 19973 e 2000, de 33,3 por mil para apenas 5,5 por mil (a média na UE15 era ainda de 6,3 por mil); que baixou a mortalidade materna para apenas 2,5 por mil já em 2000, quando a média na UE15 era de 5,4 por mil; que permitiu baixar a mortalidade infantil (mortes até um ano), entre 1973 e 2001, de 44,3 para apenas 5 por mil; que aumentou a esperança de vida dos portugueses, entre 1973 e 2001, de 69 anos para 76,9 anos (73,5 anos para os homens e 80,3 anos para as mulheres) e que tem determinado que a esperança de vida em Portugal aumente um ano em cada 3,5 anos.
Foi ainda este sistema de gestão que colocou Portugal no 12.º lugar entre todos os países do mundo quanto à prestação de cuidados de saúde à população.
No entanto, apesar de ter permitido todos estes avanços na Saúde é já claro que este modelo de gestão está esgotado porque determina actualmente importantes perdas de eficiência e de eficácia, gerando insatisfação na população, o que está a ser aproveitado pelas forças que querem destruir o SNS.
Sistema esgotado
As causas que explicam o esgotamento deste sistema de gestão são, a nosso ver, nomeadamente as seguintes.
Em primeiro lugar, é um sistema em que a gestão não é orientada pelos princípios da eficiência e da eficácia, e que se baseia fundamentalmente na técnica do orçamento incremental (para elaborar o orçamento de um ano, acrescenta-se aos valores do orçamento do ano anterior uma determinada percentagem e os valores para fazer face às despesas com novos projectos), em que não existe responsabilização pelo cumprimento dos objectivos, e em que é elevada a subutilização de meios quer humanos quer materiais até devido à falta de planeamento. É prova disso, factos enumerados pelo ex-ministro da Saúde, que não sofreram contestação pública por parte dos atingidos, de que «nos hospitais públicos, cada cirurgião faz, em média, uma cirurgia de 3 em 3 dias úteis. A utilização dos blocos operatórios é também preocupante, pois em cada sala são feitas apenas 2,3 a 2,5 operações por dia útil. O número de pequenas e média cirurgias é apenas de 0,4 por cirurgião e por dia útil». Seria extremamente importante conhecer a situação actual neste campo, mas as informações divulgadas quer pelo Ministério da Saúde quer pelos próprios hospitais, incluindo Hospitais SA, cujos relatórios e contas tivemos oportunidade de analisar, não fornecem este tipo de informação o que revela também a falta de qualidade da gestão hospitalar actual.
Associada a esta situação que continua a dominar a gestão actual no SNS, a promiscuidade público – privado que o professor Manuel Antunes de Coimbra considera «a principal causa da falta de produtividade nos serviços hospitalares» (pág. 60 do livro que publicou) continua a imperar no SNS; igualmente continua a dominar uma medicina essencialmente curativa em prejuízo da promoção da Saúde, de que é prova o anúncio da construção de 10 novos hospitais em parceria com grandes grupos económicos, coexistindo com a falta de investimento e de meios nos centros de Saúde onde, por ex., não existem médicos de família para mais de 800 000 portugueses, e onde especialistas para promover a Saúde da população – pediatras, dentistas, oftalmologistas, etc, – praticamente desapareceram ou nunca existiram.
Por outro lado, as graves assimetrias entre as diferentes regiões do País no campo da Saúde não têm diminuído (por ex., a região de Lisboa e Vale do Tejo tem cerca de 34% da população mas 44% dos médicos). A nível da gestão hospitalar coexistem elevadas dívidas a fornecedores com elevadas dívidas por cobrar, incluindo de companhias de seguros (por ex. em Junho de 2002, as dívidas aos hospitais não cobradas atingiam 617,9 milhões de euros).
É evidente que todas estas situações de ineficiência e de ineficácia só se têm perpetuado porque existem grupos de interesses instalados que lucram com elas, e que estão interessados em mantê-las. Assim, defender de uma forma cega aquilo a que chamamos a gestão pública administrativa da Saúde, como muitas vezes é feito, só contribuirá, a nosso ver, para facilitar a acção daqueles que pretendem destruir o Serviço Nacional de Saúde.
Primeiro passo para a privatização da Saúde
Em relação ao modelo de gestão economicista da Saúde já existem dois exemplos concretos paradigmáticos que, mais de que quaisquer palavras, mostram com clareza o que ele significa na prática.
E esses dois exemplos são os contratos tipo impostos pelo Ministério da Saúde aos Hospitais SA e a proposta de ACT para os mesmos hospitais apresentada pelo Ministério da Saúde aos sindicatos do sector. Destes dois documentos apenas se vai referir alguns aspectos significativos e paradigmáticos.
Em relação ao contrato programa assinado entre os hospitais SA e o Ministério da Saúde, através da chamada unidade de missão, interessa dizer que na sua elaboração os profissionais de Saúde desses hospitais foram marginalizados, continuando a desconhecer o seu conteúdo, não existindo qualquer contratualização com os respectivos serviços visando assegurar o seu cumprimento, chegando ao ponto desses contratos serem secretos mesmo para os profissionais dessas unidades, que nunca os conheceram, analisaram e debateram, nomeadamente a sua desagregação a nível de cada serviço. Nesses contratos constam cláusulas tipo que são um verdadeiro atentado a um serviço público de Saúde.
Esses hospitais recebem mais quando não atingem as metas acordadas do que quando ultrapassam essas metas. Por exemplo, por cada internamento não realizado abaixo da meta de produção recebem 1250 euros, e por cada internamente realizado acima dessa meta recebem apenas 638 euros. Em relação às consultas externas, o preço pago é de 36 euros por cada consulta que realizem a menos, e apenas 19 euros por cada consulta que realizem a mais.
Desta forma, fica totalmente claro que o objectivo deste sistema de gestão é puramente economicista, ou seja, reduzir despesas, e não a satisfação das necessidades da população.
Situação semelhante se verifica em relação à proposta de ACT para os Hospitais SA apresentada pelo Ministério da Saúde. Recordemos apenas algumas cláusulas dessa proposta governamental. O horário de trabalho semanal de todos os trabalhadores seria aumentado para 40 horas e o dos médicos e enfermeiros para 9 horas diárias e 45 semanais (cláusula 26.ª). A remuneração hora paga aos médicos baixaria, em média, 30%, a dos enfermeiros em 10% e a dos outros trabalhadores baixaria em média entre 10% e 16%. Só seria considerado trabalho nocturno, com direito a acréscimo de remuneração, o realizado entre as 24 horas e as 7 horas (cláusula 81.ª). O regime de comissão de serviço, que é um contrato extremamente precário pois a entidade patronal pode despedir o trabalhador quando quiser, passaria a ser aplicado a todos os profissionais de Saúde (cláusula 64.ª). A definição do local de trabalho seria alargada e passaria a abranger, por exemplo, o centro hospitalar com unidades de Saúde instaladas em vários concelhos (cláausula 25.ª). Os profissionais de Saúde passariam a estar sujeitos a transferências obrigatórias para outras unidades de Saúde a que não se poderiam opor (cláusula 70.ª). Aspectos essenciais das relações de trabalho, como são a avaliação, as promoções, etc., deixariam de poder ser negociadas pois passariam a ser abrangidas por regulamentos internos, em que o poder é exclusivamente da entidade patronal.
Através destes dois exemplos concretos paradigmáticos fica claro que a empresarilização da Saúde no âmbito do SNS tem como objectivo fundamental reduzir despesas à custas dos utentes e dos profissionais de Saúde, determinando a degradação do serviço de Saúde prestado à população, e constituindo um passo importante na direcção da privatização do sistema público da Saúde, já que introduz neste a lógica privada.
É preocupante que o programa do PS para a Saúde afirme que um dos objectivos será «dotar os hospitais públicos de mecanismos de gestão efectiva, prosseguindo o processo de empresarialização» (pág. 80).
A gestão privada da Saúde à conta do OE
O terceiro sistema é a gestão privada do sistema público de Saúde com base na exploração de equipamentos e instalações adquiridas com fundos públicos e num mercado financiado pelo Orçamento do Estado.
O edifício jurídico que permite a gestão e a exploração privada da Saúde pública foi construído pelo governo do PSD/PP. Assim, estes partidos, enquanto estiveram no governo, começaram por aprovar a Lei 27/2002 que alterou cirurgicamente a Lei de Bases da Saúde que estava em vigor (a Lei 48/90) em três aspectos essenciais, a saber: a Base XXIII para poder introduzir no sector de Saúde pública os contratos individuais de trabalho e aplicar o Código do Trabalho visando destruir as carreiras dos profissionais de Saúde; a Base XXXIII para que o financiamento das unidades de Saúde passasse a ser feita com base numa tabela de preços e em contratos, o que era fundamental para criar um mercado de Saúde para os privados financiado pelo OE; e a Base XXXVI para poder transformar os hospitais públicos em sociedades anónimas, passo indispensável para depois proceder à sua privatização.
Seguidamente publicaram várias leis que, por um lado, tornam possível a entrega de equipamentos, instalações, serviços públicos de Saúde e mesmo de unidades de Saúde à exploração privada e, por outro lado, garantem o financiamento pelo Orçamento do Estado de um mercado seguro e lucrativo para esses mesmos grupos privados.
Assim, a chamada nova Lei de Gestão Hospitalar permite no seu art.º 10.º a entrega «da exploração ou a subcontratação de um centro de responsabilidade ou de acção médica», ou seja, dos serviços dos hospitais públicos a «entidades privadas que demonstrem capacidade e competência técnica». Esta entrega à exploração privada de serviços de Saúde pública é da competência do ministro que, no entanto, poderá até delegar nas próprias ARS (art.º 12). Depois foram publicados os decretos leis que transformaram os 34 Hospitais Públicos em 31 Hospitais SA onde, em todos eles, aparece uma disposição que permite às respectivas administrações «celebrar contratos ou acordos que tenham como objecto a gestão de partes funcionalmente autónomas do hospital» (ex. art.º 9.º do DL 272/2002). Seguidamente foi publicado o DL 185/2002, a chamada lei parceria público-privados, que permite a entrega e a exploração de 10 novos hospitais previstos pelo governo PSD/PP a grandes grupos económicos. É um enorme negócio para os privados que, tomando como base os dados do concurso para construção e exploração do Hospital de Loures, estimamos entre 1400 e 2000 milhões de contos, e que garantirá aos grupos económicos contratos seguros e, naturalmente lucrativos, para um período de tempo que varia entre 10 e 30 anos.
Os próprios centros de Saúde não escaparam a esta fúria legal privatizadora. Assim, em 2003 é publicado o Decreto Lei n.º 60/2003 que, no seu art.º 23, estabelece que «sob proposta da ARS pode o ministro autorizar a gestão de um centro de Saúde ou de parte funcionalmente autónoma» por entidades privadas com fins lucrativos.
Paralelamente, e para tornar seguro e lucrativa esta exploração privada de bens adquiridos ou construídos com fundos públicos, em todas as leis referidas anteriormente existe uma disposição que visa garantir um mercado seguro para os privados financiado pelo Orçamento do Estado. Assim, na nova Lei de Gestão hospitalar é o art.º 5.º que estabelece que o pagamento é feito com base numa tabela de preços e acordos com o SNS. Em relação aos Hospitais SA é o art.º 25.º dos decretos lei que os criaram. Relativamente aos Hospitais construídos com base na chamadas parcerias público-privados é o art.º 18.º do DL 185/2002. Finalmente, em relação aos centros de saúde é o art.º 19 do DL 60/2003.
Desta forma, o governo PSD/PP construiu o edifício jurídico que permite a entrega da Saúde pública à exploração privada com o apoio do Estado.
Mais despesas para o Estado
Contrariamente ao que muitas vezes se pretende fazer crer a gestão privada não reduz os custos. Até os aumenta porque incorpora o lucro e o risco do privado que tem de ser pago. É evidente que se o grupo Mello está interessado em ficar com a exploração de metade dos Hospitais PPP e também dos Hospitais SA, como um dos seus principais responsáveis já afirmou publicamente, não é para perder dinheiro, mas assim para obter lucros, e quanto maiores melhor.
De acordo com dados divulgados pela própria Organização Mundial de Saúde, os países que optaram por um modelo de Saúde com domínio dos privados são precisamente aqueles que apresentam despesas com a Saúde mais elevadas e onde o crescimento tem sido maior. Por exemplo, o Estados Unidos, que são normalmente apresentados com exemplo de um sistema de Saúde predominantemente privado, em 2002, as despesas com a Saúde corresponderam a 14,6% do PIB, enquanto na UE15 representavam, em média, 9% do PIB. Por outro lado, na UE15, em média apenas 25% da despesa total com a Saúde é suportada pelos próprios utentes (em Portugal ultrapassa os 30%), enquanto nos EUA a percentagem da despesa com a Saúde que é suportada directamente pelos utentes ronda os 55%. Portanto, no «paraíso privado norte-americano» gasta-se muito mais com a Saúde do que na UE15, e a parte paga directamente pela população é muito superior à registada na UE15, pois nesta em média 75% é suportada directamente pelo Estado, enquanto nos EUA a parcela suportada pelo Estado corresponde apenas a 45% da despesa total do País com a Saúde.
O programa eleitoral do PS apenas contém o compromisso de transformar os Hospitais SA em Entidades Empresariais Públicas (as chamadas EPE – pág. 80 do Programa), o que significa, por um lado, que o seu capital terá de ser detido pelo Estado e por outras entidades públicas (art.º 26 do DL 558/99), o que é positivo; e, por outro lado, a aplicação às EPE do contrato individual de trabalho e do Código do Trabalho, bem como dos princípios de gestão empresarial ou economicista, o que é bastante negativo. Para além disto, o Programa do PS apenas promete revogar o DL 60/2003 (pág. 79) e rever (não acabar) o modelo de parcerias público-privados (pág. 80 do programa), o que significa, na prática, a entrega dos novos hospitais à exploração privada. Parece ser também intenção do PS manter as alterações que o PSD e o CDS introduziram na Lei de Bases da Saúde assim como a nova Lei de gestão hospitalar. Pelo menos, no Programa não existem quaisquer medidas anunciadas em relação a estas matérias fundamentais.
Gestão pública eficaz da Saúde
A implementação no Serviço Nacional de Saúde de uma gestão orientada pelos princípios da eficiência, eficácia e responsabilização obriga, a nosso ver, à introdução de profundas mudanças no SNS assim como a alteração da cultura ainda nele dominante. E essas modificações são nomeadamente as seguintes:
• Acabar com a promiscuidade entre o público e o privado, separando os dois sistemas. Por ex., não devia ser admissível que um director ou um especialista do serviço de hemodiálise –nefrologia – de um hospital público possa trabalhar simultaneamente numa das principais multinacionais de hemodiálise instaladas em Portugal, como são a FRESSENIUS e a GAMPRO ou possuir uma empresa para fazer o mesmo;
• Criar carreiras motivadoras e compensadoras para os profissionais de saúde que optem integralmente pelo sistema público;
• Investir fortemente na promoção da Saúde destinando uma parcela muito maior dos recursos disponibilizados pelo Estado para Saúde aos centros de Saúde, apetrechando-os com os meios materiais e humanos de que necessitam;
• Investir mais no ensino da Saúde de forma a formar os profissionais que o Ppaís precisa;
• Implementar nas unidades de Saúde uma gestão baseada nos princípios da eficiência, eficácia e responsabilização, o que pressupõe a contratualização aos diversos níveis de responsabilidade com base num orçamento e num plano anual elaborados com a participação dos respectivos profissionais, de forma a garantir a eficiente e plena utilização dos meios existentes assim como a responsabilização dos profissionais pelo cumprimento do orçamento e plano. Não é admissível a subutililização de meios materiais e humanos, incluindo de serviços inteiros, que se continua a verificar em muitas unidades de Saúde devido à ausência de um planeamento e de uma responsabilização eficaz, e até de interesses instalados que tiram partido de tal situação;
• Criar redes de aprendizagem com as boas práticas verificadas na área da Saúde acessível aos respectivos profissionais e de um cartão de utente com os dados clínicos do seu possuidor, instrumentos importantes para aumentar a eficiência e a eficácia dos meios utilizados;
• Impulsionar fortemente a utilização dos genéricos, garantindo a sua qualidade, e tornando obrigatório que os médicos os prescreverem;
• Levar a cabo negociação muito mais agressiva e eficaz com os laboratórios de forma a baixar os preços de medicamentos escandalosos que praticam e alterar a comparticipação dos medicamentos com base no preço de referência, que se tem traduzido num aumento insuportável de encargos para os doentes com mais baixos rendimentos, e tornar gratuitos os medicamentos destinados a doenças crónicas.
É evidente, que não é «prosseguindo o processo de empresarialização» nem apenas revendo a chamada lei de parceria púublico-privados (DL 185/2002) como defende o PS na pág. 80 do seu Programa eleitoral, nem entregar a gestão da Saúde pública à exploração privada como defendem Correia Campos, ex-ministro da saúde do PS, o PSD e o CDS que se resolverão os problemas que enfrenta actualmente o Serviço Nacional de Saúde.