Sinais de Peste

Correia da Fonseca
A notícia começou na primeira página do «Expresso», chegou aos telenoticiários dos diversos canais, trepou até às alturas da emissão de estreia de Marcelo Rebelo de Sousa na RTP: a Polícia Judiciária de Faro terá espancado uma detida em regime de prisão preventiva, desse modo tentando obter uma confissão de crime gravíssimo que, decorridos já mais de cinco meses, não conseguiu solucionar por meios civilizados. As fotografias das marcas deixadas por esse peculiar método de investigação no rosto e no corpo da detida passaram das páginas do semanário para os ecrãs da TV. Confirmações obtidas por jornalistas junto de fontes hospitalares foram divulgadas. Posteriormente, surgiram declarações oficiais a darem conta pública do início de investigações internas para apuramento da verdade e, já se vê, de eventuais responsabilidades. Entretanto, elementos da PJ de Faro terão esclarecido que não senhores, não tinham batido na detida, ela é que se atirara de uma escada abaixo. Infelizmente, este género de informação faz lembrar tristemente as explicações que uma outra polícia em tempos dava quando por excepção era julgado conveniente dar alguma explicação, pelo que bem se pode dizer que, tenham fundamento ou não as notícias agora publicadas, mais lhes valera estarem calados. É certo que a criatura que, ao que tudo indica, foi torturada (é bom que apliquemos a palavra certa para que nem de longe nos tornemos cúmplices de uma eventual manobra de aligeiramento do facto), não é pessoa que tenha as simpatias gerais, longe disso, não porque seja do conhecimento pessoal da população mas sim pela repugnância que o crime de que é suspeita inspira e pelo que dela se vem sabendo desde há meses pela comunicação social. Convém lembrar, contudo, que a autoria do crime está longe de estar provada, o que aliás terá estimulado os investigadores a aplicar métodos «mais duros» para escaparem à suspeita de não serem tão competentes quanto seria desejável. E que, quanto ao desenho do perfil humano deste ou daquele, por muito respeitáveis que sejam os media é sempre adequado usar de alguma prudente reserva quando nos é tacitamente proposto passarmos de uma antipatia de princípio para uma cumplicidade moral com a brutalidade e a baixeza. É bom sabermos que os torcionários de todos os tempos e lugares começam, como prelúdio aos seus crimes por colar aos torturados uma invisível etiqueta que lhes retira em maior ou menor grau a condição de «simpatia» que é inerente à mera condição de ser humano. Hoje, os iraquianos suspeitos de resistir são «antipáticos» para os norte-americanos que se sentem ameaçados, tal como há décadas os judeus eram «antipáticos» para os que se orgulhavam de serem arianos e há séculos os supostos heréticos eram «antipáticos» para a ortodoxia da Santa Inquisição. Nestes diversos contextos, ser «antipático» correspondia à perda parcial da qualidade humana que torna proibitiva a aplicação da tortura. Pelo que, neste caso da PJ de Faro a torturar uma mulher detida, alegar que o acto não justifica indignação porque a torturada é suspeita de ter assassinado uma filha é qualquer coisa que se situa entre a estupidez e a infâmia.

Nem pretextos nem desculpas

Alguns casos anteriores já nos tinham feito perceber que para alguns aparentes agentes da ordem ser negro ou ser cigano é ser menos gente que um branco, sobretudo se bem vestidinho, pelo que é natural aplicar-lhe «os safanões dados a tempo» que o doutor Salazar recomendava aplicar aos subversivos dos anos 30, também eles incursos na perda parcial da sua condição de humanos. Ora, a questão é que a tortura de um preso é sempre um crime hediondo e obviamente um acto de inqualificável cobardia, seja quem for o torturado e seja qual for o pretexto. Comecemos hoje por aceitar a tortura de uma mulher suspeita de ter assassinado a filha (crime que neste caso nem sequer está confirmado, mas esse aspecto do caso não chega a ser relevante) e um dia destes podemos ser convidados a tolerar a tortura de um grevista que se recusou a identificar o líder da paralisação havida, antipática para a opinião pública por ter motivado graves transtornos à vida quotidiana. A questão é que também nisto do uso da tortura tudo pode decidir-se na tolerância quando do seu início, na «compreensão» perante a aplicação a um preso que «não mereça ser tratado como ser humano». Depois disto, tudo fica entregue ao critério de cada qual. Ou mais exactamente: à apetência de quem tem o poder concreto de torturar. Pelo que é imperioso que se corte o caminho a essa repugnante espécie de peste que pode, sem que antes o tenhamos pressentido, assumir capacidade de contágio e, um dia, formas epidémicas.


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